Antes de mais, há que admitir que todos os textos sobre esta viagem a Malta foram escritos de memória, mais de um ano depois, com muita aventura pelo meio a dissipar os os detalhes. Durante alguns anos não consegui pôr no “papel” as impressões de viajante. Simplesmente não consegui lidar com a intensidade dessas andanças. Tanto para contar, tão pouco tempo… e a maldita da memória que não ajuda. Quando iniciei a viagem aos Balcãs, em Outubro de 2010, decidi tentar contrariar tal estado de coisas, e consegui manter um registo diário. Foi gratificante, e penso que ultrapassei o estigma que, durante demasiado tempo, me impediu de contar textualmente as tais aventuras e desventuras que sempre se encontram por detrás de cada viagem. Malta foi simplesmente mais uma das vítimas desse período de silêncio. Ficaram a faltar as crónicas da Suécia e do Cáucaso, da Dinamarca e da Bélgica, do Luxemburgo e de Milão, de Riga e de Cracóvia e certamente outras mais que, lá está, a fraca memória me obscurece neste momento. Vamos, com calma, tentar atenuar esse esquecimento e colocar o trabalho em dia. vamos lá então ò Malta!

Já nem sei de onde veio a ideia de ir a Malta. Gaiato, fantasiava com aquelas paragens, porta naval que separava a sala de estar ocidental da antecâmara otomana, correspondência aquática para a  barreira balcânica, fronteira eterna entre dois mundos. Sonhava com os “Cavaleiros” e com as suas lutas contra as hordas orientais, envolvido na magia de um mundo diferente, a meio caminho entre o meu e o dos outros. Mas com o tempo tudo isso se desvaneceu, e, em idade de viagens, nunca pensei muito em Malta. Se calhar porque construí o paradigma de uma ilha demasiado idêntica ao meu próprio meio, mediterrânica, seca, solarenga, rodeada de mar azul e praias. Depois, a minha sobrinha Ana passou lá umas férias e a mensagem que passou no regresso não foi exactamente positiva. Por tudo isto, repito, não faço já ideia do que me fez decidir passar uma semanita naquelas duas ilhas a meio caminho entre a bota italiana e as terras da Líbia. Talvez me tenham passado pelos olhos algumas imagens agradáveis que despoletaram um processo de investigação e exploração, num entusiasmo crescente, que culminou na compra das passagens aéreas. Faro – Londres com a EasyJet, e depois, Londres – Malta com a Ryanair, seguindo-se o percurso inverso, com os mesmos actores, na volta. Quatro vôos, 180 Euros. Um valor que actualmente não hesitaria em classificar de exorbitante, com o início da rota Sevilha – Malta, geralmente disponível por tuta e meia.

Chegar a Malta foi uma sensação nova. Apesar de tecnicamente ser parte da Europa, Malta tem um perfume africano que se fez sentir logo à saída do terminal: o calor abafado, as palmeiras, as gentes de tez ainda mais morena que os portugueses. Do aeroporto a La Valetta pode-se ir de táxi, mas com o autocarro mesmo ali seria mesmo um deitar de dinheiro à rua. Entrar num país que usa a mesma moeda que nós é sempre confortável. Se mais nada existir, algo fez por nós a Comunidade Europeia e o complexo Euro. Não há preocupações com casas de câmbio, taxas de conversão, comissões e toda a panóplia de truques obscuros que demasiadas vezes envolvem o negócio do dinheiro estrangeiro.

Já sabíamos que os autocarros de Malta eram por si uma atracção turística, e foi com alguma decepção que vimos surgir uma unidade rolante tão moderna como as de qualquer capital da Europa Ocidental. O seu tempo viria, mas para começar tivemos de nos conformar com a banalidade de um autocarro moderno. Este, foi-se aproximando de La Valetta, por entre uma paisagem desolador, semi-desértica, dominada pelos tons amarelos da terra e da pedra local. Mas quando deu por terminada a sua marcha, a magia começou.

Estávamos na praça com a fonte de Neptuno, centro absoluto da rede de transportes da ilha de Malta, para onde todos os autocarros se dirigem, e de onde todas as carreiras têm origem. Existem umas quantas honrosas excepções, mas, por razões prácticas, pode-se perfeitamente dizer que todos os percursos de autocarro se iniciam aqui. E ali estavam eles, os famosos amarelinhos. Cada um com uma personalidade própria. De marcas diferentes, com pinturas personalizadas, à imagem dos seus motoristas. Mas quase todos eles muito antigos, das décadas de 40, 50, 60. São máquinas inglesas e americanas, testemunhas dos tempos em que o Império Britânica reinava sobre estas terras. Nas ruas e estradas conduz-se pela esquerda, e, diga-se de passagem, não se o faz de forma propriamente correcta. Depois de muito ponderar e hesitar acabei por desistir da ideia de alugar um carro e limitei-me a comprar um bilhete semanal de autocarro, que custou uma ninharia… algo como dois Euros e pouco.

 





 

Depois de rodopiar como uma barata tonta entre os autocarros que constituem aquele verdadeiro museu dos transportes, disparando vezes sem conta a Nikon D70, acabámos por nos internar em La Valleta. É uma cidade estranha. Na realidade, não é mais do que um bairro feito capital. Quando foi fundada, fruto de um plano estruturado que construiu uma cidade a partir do nada, seria uma cidade modelo. Mas vivia-se então no século XVI e o espaço de La Valleta não se dilatou desde então. Continua a ocupar a mesma área entre muralhas, actualmente com cerca de seis mil habitantes.

O dia estava uma brasa, e salvaram-nos as nuvens que por vezes tapavam o sol. Estava-se em meados de Setembro. Não desejaria ao meu pior inimigo a tarefa de por ali andar no pico do Verão, em Julho ou Agosto. Mesmo com as muitas sombras, foi uma tarde a suar em bica, carregando a mochila, que nos acompanhou até que procurámos a hospitalidade do Jeff, lá para o final do dia.

 





 

La Valleta é uma cidade fortaleza, ou pelo menos foi construída como tal. As suas ruas são paralelas, fruto do tal plano estruturado, e as muralhas envolvem-na como um manto. Entra-se pela parte mais elevada, e depois é sempre a descer, até ao seu fundo. As vielas são encantadoras, repletas de detalhes pitorescos, a transpirar uma cultura que nos soa familiar mas que não é bem a nossa: a herança mourisca, apesar do breve período em que os árabes ocuparam a ilha, está presente, tal como no sul de Portugal. Depois, a influência mediterrânica, tal selo climatérico a deixar sua estampa impressa no papel que atinge. Mas apesar dos traços familiares, a combinação de ingredientes em porções distintas resulta num manjar único, apimentado com um exotismo muito especial, mas com uma base europeia que deixará confortável os menos aventureiros.

A tarde foi passada a explorar La Valleta. Não é meu estilo descrever os pontos turísticos dos locais que visito, até porque muitas vezes nem chego até eles. Na capital de Malta ficou-me na memória o jardim miradouro de “Upper Barakka”, de onde se obtém a imagem de marca do país, com a vista sobre a fortaleza e cidade que se avista em frente. Apreciei o passeio relaxado pelas ruas, ao acaso. Achei interessante a ruína da casa da ópera, destruída durante a II Guerra Mundial, e que ali ficou, feito memorial dessa época de devastação, a acolher os visitantes que entram na cidade e viram à direita. Impressionou-me a arquitectura do albergue de Castela e Leão (nos tempos em que a Ordem de Malta reinava sobre a ilha, os seus membros dividiam-se segundo as origens, habitando em albergues variados espalhados pela cidade) , onde, já agora, se incluíam também os cavaleiros portugueses.

 


 

Entretanto, a fome apertava. É certo que na “praça dos autocarros” existe um bom número de “barraquinhas” onde se podem comprar deliciosos bolos e pastéis, assim como artigos genéricos de mercearia. Mas apetecia… algo diferente. Escolhemos uma tasquinha restaurante, perto dos jardins “Lower Barraka”. Ali me deliciei com uma fabulosa salada grega, servida por um bem disposto jovem, com claros indícios de ser o filho do dono que ali dava uma mãozinha.

Acabámos por percorrer todo o perímetro e com isto chegava a hora de partir em busca do nosso anfitrião, na localidade de Rabat, bem perto de Medina, a antiga capital de malta antes de chegada dos cavaleiros. Esperámos bastante tempo pelo autocarro que nos tinha sido indicado, com aquela ansiedade natural de quem procura chegar a um local para pernoitar num país estrangeiro já depois do sol posto. Depois, foi acertar com a paragem certa, o que não sucedeu. Desencontro. Contacto telefónico, e finalmente a segurança de um abraço amigo e de um tecto acolhedor. Nessa noite fomos hóspedes de Jeff Muscat e dos seus companheiros de apartamento, um casal anglo-maltês. Todos os três trabalham numa instituição de apoio a toxicodependentes e já no seu passado trilharam essas sinuosas vielas. O jantar foi oferecido pelos anfitriões, e assim, de barriguinha cheia, acabou o primeiro dia em terras maltesas.

 

 

1 COMENTÁRIO

  1. E assim numa manhã fica aqui uma belíssma reportagem de mais uma paragem neste nosso planeta!
    Adorei os autocarros!!!!
    E a tua prosa!

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