21 de Novembro

Um dia sem fotografias. Sempre na estrada, sempre a resolver problemas. As coisas não começaram mal. À hora marcada, ainda o sol não se tinha levantado, pegar nas mochilas previamente preparadas e descer as escadas, passando pela recepção em bicos de pés para não acordar o simpático funcionário do Ahmed que, como sempre, dorme no sofá, pronto a acorrer à chegada de um qualquer cliente inesperado. Depois, lidar com um taxista, a rotina usual: o taximetro que não funciona (para os estrangeiros, raramente funcionam), discutir uma taxa fixa. Por um lado este expediente não é mau. Chegado a um acordo sabemos pelo menos que não vamos ser levados pelos quatro cantos da cidade de forma a aumentar o valor da corrida. O valor a pagar pode ser inflacionado à luz dos padrões locais, mas é sempre uma pechincha, mesmo assim.

Na estação de autocarros. Temos sorte. Vai sair agora mesmo um. O tipo quer-nos impingir bilhetes para o próximo, que parte ao meio-dia. É tanga. Ele ainda tem dois bilhetes para o que queremos, mas pensa que pode enfiar o barrete aos turistas, ir já adiantando vendas e guardar aquele par para um qualquer cliente sírio que chegue nos próximos minutos. Quando lhe viramos as costas, os bilhetes que queremos aparecem logo. Excelente. Como são os últimos, correspondem ao melhor lugar, mesmo à frente, com vista panorâmica. Como para cá, também para lá seguimos num autocarro de luxo, com poltronas super confortáveis e espaçosas. Viajar de uma ponta à outra da Síria custa 4 Eur, e é por ser naqueles autocarros de luxo, porque num normal seriam 2 Eur. O sistema de camionagem no país é algo complexo, porque existem diversos operadores a efectuar as mesmas ligações, e se for caso disso há que visitar vários escritórios para obter o que queremos.

A viagem corre célere, não se dá pelo tempo passar. São quatro horas, mas não se instala o tédio. Mesmo passando pelos postos de controle habituais chegamos a Damasco num instante. Recomeça a dança com os taxistas. Temos que seguir para um local específico, de onde partem os táxis partilhados para Amman. É um ponto na rua, onde alguns carros aguardam clientes, com um escritório discreto onde os condutores aguardam e onde o dinheiro passa de mãos. Um taxista concorda em nos levar lá por um preço aceitável. Mas ele tem outras ideias em mente: comissão! Pelo caminho faz um telefonema. Percebemos que fala de nós. Ouvimos as palavras “Amman” e “Portugal”. Mais à frente, numa rotunda, o táxi pára e um tipo diz-nos que nos vai levar para Amman. Ainda lhe pergunto quanto será antes dele entrar, mas finge não ouvir.

Pelo caminho paramos para o novo passageiro se abastecer de chá. Há mais telefonemas, de novo sobre o assunto que nos interessa. Quando chegamos ao local, percebemos que o tipo não é um condutor mas sim um intermediário… mais um. Leva-nos até um táxi que está de partida para Amman.  O primeiro valor que nos pedem é absurdo. 100 USD. Não queremos pagar mais do que 12 Eur por pessoa, o preço justo para um táxi partilhado. Depois de muita discussão, chegamos a um ponto pacífico. Ele desce o preço até um valor mais do que justo mas que mesmo assim não nos serve: é que não há mais gente com que partilhar a viagem, por isso teríamos que pagar a totalidade do espaço. Não pode ser. Nem queremos gastar essa quantia nem tão pouco a temos. Começo a ficar nervoso. Só há mesmo este meio de chegar à capital da Jordânia, faz-se tarde, e senão aparecerem mais parceiros estamos tramados.

De repente, dá-se um pequeno milagre. O angariador pergunta-nos de onde somos. De Portugal. E tudo muda. O sorriso automático de quem deve sorrir para ganhar a vida transforma-se. Agora, vai de orelha a orelha e assume feições de uma sinceridade indesmentível. O homem está apaixonado por Portugal e pelos portugueses, em muito devido ao futebol, mas também pela nossa neutralidade política. Ganhámos ali naquele momento um amigo, que de repente está a discutir os melhores preços e condições em nosso nome, com uma ferocidade inigualável. Faz telefonemas, corre aqui e ali. Pega numa das nossas mochilas e põe-na às costas, só para ajudar nas andanças. E de tempos a tempos vira-se com aquele sorriso e enaltece Portugal mais um pouco. Foi a nossa salvação. Manda-nos esperar no escritório e pagar practicamente o que queriamos. Arranjou-nos um táxi que vai levar mais uma pessoa, e portanto, apesar de ser mais um pouco, safamo-nos com 24 Eur cada. Depois, desaparece.

Uma meia-hora depois entra pela porta e diz-nos para pegarmos nas mochilas, vamos partir. Leva-nos para o outro lado da rua, com todos os cuidados e gentilezas, explicando tudo o que se vai passando e o que já se passou. E pronto, estamos no táxi. A nossa companheira de viagem é uma senhora de meia-idade, para o baloufo, toda embonecada, que obviamente é uma velha amiga do condutor. Ela fala um pouco de inglês e faz-nos as perguntas de ocasião.

Mais à frente paramos num armazém onde ambos se abastecem de tudo e mais alguma coisa, quase enchendo a bagageira do carro. E nisto estamos na fronteira, que é sempre um elemento de tensão, sobretudo na Síria. Passamos os trâmites sem problemas. Os diversos níveis de controle são ultrapassados, é paga a taxa de saída, recebemos os carimbos, e estamos já na terra de ninguém, onde existem as lojas tax free. Os nossos amigos são consumistas inveterados e quando o condutor nos vê entrar também na loja, onde iamos só espreitar, exulta! Mete-me na mão um saco cheio de volumes de tabaco, pede-me para esperar no carro e vira-me as costas, certamente para se abastecer de dose igual.

Muito tempo depois vimos chegar os foliões das compras. Arranjam e organizam tudo o que trouxeram, sobretudo tabaco e garrafas de whisky. E então, quando já estamos dentro do carro, o tipo ajoelha-se, abre qualquer coisa no carro, perto da roda, e esconde uma porção de mercadorias. Mau! Querem ver que passámos pela fronteira síria para ir de choça no lado jordano!? Mas não. Lá pagamos o que há a pagar, novo visto no passaporte e já estamos a rodar na Jordânia. Alívio! Há uma tensão na Síria que não se consegue explicar por palavras, mas que mexe com os nervos de forma indelével mas permanente. Estar na Jordânia oferece um sentimento de segurança reconfortante. Naquele país, “não se passa nada”, é como estar em casa.

Com tudo aquilo, a noite chega de novo. A nossa amiga é deixada em casa de familiares, numa cidade dos arredores de Amman. E depois chega a nossa vez. Como sempre tem sucedido nestas abordagens às grandes cidades vindos do exterior, somos deixados num local que desconhecemos, entregues à nossa sorte. “Center here, bye”. E pronto, o nosso taxista desaparece na multidão de carros que à hora de ponta preenche as ruas da capital jordana. E agora? O GPS não quer colaborar. Olha… o que é aquilo, mesmo ali defronte? Uma loja de telecomunicações? Talvez seja boa hora para comprar o nosso SIM card para os próximos dias.

Sentado à mesa de atendimento, um homem jovem, com roupagem e barba em perfeita sintonia com o nosso arquétipo de terrorista islâmico. Ai que vamos ter problemas. O gajo vai dizer que não atende ocidentais ou algo do género! E não é que se passou o oposto!? Que simpatia de rapaz! Fez tudo para nos ajudar. Explicou-nos as condições do serviço, com todas as suas nuances. Deu-nos tempo para decidir o que se ajustava melhor às nossas necessidades. Ofereceu-nos chá. Perdeu um tempão a processar o nosso pedido, a telefonar para desbloquear o SIM que nos vendeu, a certificar-se que tudo estava a funcionar correctamente antes de nos deixar ir. E ainda nos deu conselhos sobre como chegar ao nosso destino. Onde apanhar táxi, quanto aceitar pagar. A loja, como se viu posteriormente, tinha um público triste. Aquele devia ser um bairro pobre, e os homens que entravam e saiam iam ali fazer telefonemas para as famílias, sabe-se lá em que paragens distantes deixadas para trás, trocadas pelo sonho de ir para a grande cidade ganhar uma vida melhor. Mas todos nos sorriam com simpatia, curiosos, sem hostilidade, com aquela aparição inusitada na “sua” loja. Experiência brilhante!

E pronto. Em menos de nada estávamos em casa. Foi uma alegria! Os nossos amigos jordanos adoraram ver-nos de volta, sãos e salvos, vindos da terra onde, segundo eles crêem, se comem crianças ao pequeno almoço e turistas como refeição principal.

Depois de um dia de tanta tensão, fomos para a rua, andámos até à “Rainbow Street”, o centro de ocidentalidade de Amman. Queriamos um local com acesso Internet, procurámos um cyber café que tinhamos visto aquando da nossa primeira passagem por ali, mas não o encontrámos. Um mistério que perdurará para sempre: o estabelecimento era enorme, de dois andares, do lado esquerdo, e apesar da rua não ser assim tão longa, fizemos duas passagens e não o vimos. Foi como se se tivesse desvanecido, engolido pela terra. Conformados, voltámos ao Caffe des Artistes, que de qualquer modo tão bem nos tratou no outro dia. Passámos ali uma hora de descontração, antes de regressarmos ao nosso território natural.

O serão passou-se, como sempre, no bom Limana, o nosso café de eleição em Amman. Quando entrámos, demos de cara com o empregado egípcio que tantas vezes nos atendeu, e vimos a sua face iluminar-se de alegria. Exclamou: “You are back!”. Ao fim de alguns dias a ir ali, já faziamos parte da casa.

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