Para compreender o título deste artigo o leitor deverá ter visto o filme “Under the Tuscan Sun” (2003), que conta a história de uma mulher norte-americana dos seus quarenta anos, que decide expontaneamente comprar uma propriedade em Itália. O que se segue é um conto carregado de emoções positivas que vai descrevendo as suas aventuras e desventuras enquanto se integra na comunidade local e, com a ajuda de uma equipa de trabalhadores polacos, vai renovando a sua casa na Toscânia.
E é precisamente entre estes emigrantes eslavos que vamos encontrar “o professor” Jerzy, um tímido pintor de construção civil, que é por formação e carreira um brilhante professor de literatura, que sonha com os seus livros enquanto espalha a tinta pelas paredes entregues ao seu ofício.
A estória começa agora, com a chegada a Pazin, na Istria croata. Vou ficar com uma jovem família e quando chego há uma pequena multidão na sala. Na TV o Real Madrid joga com uma equipa alemã para a Liga dos Campeões, e o “professor” assiste, concentrado. E quem é este “professor”? Na realidade Vlado, o irmão do dono da casa, que assim que lhe coloco a vista em cima me faz lembrar a personagem do filme. É a fisionomia e o seu modo sonhador, a face de um homem a despedir-se da juventude, socialmente falhado mas interiormente resplandecente. Naquele momento houve um “click” de simpatia, uma química silenciosa que me levou a decidir em poucos segundos que gostava daquele tipo.
Perante a inexistência de uma foto do meu amigo “professor”, deixo uma imagem do “professor” do filme.
No dia seguinte, quando chegámos das nossas expedições diárias, não estava ninguém em casa. Fomos dar um passeio a pé pelas ruas de Pazin, e acabámos por encontrar os nossos anfitriões. Conversámos um pouco ali mesmo, na calçada, e ele disse-nos que podiamos ir andando mas que como tinha que ajudar o irmão a mudar uma máquina de lavar roupa de lugar, juntar-se-nos-ia mais tarde. Mas não! Claro que não! Iriamos com ele para ajudar no que fosse preciso. E fomos, andando, subindo a estrada que deixa Pazin para trás, até chegar ao bloco certo. Era ali.
Entrámos, e o “professor”, lá estava, satisfeito por nos ver. Mostrou-nos brevemente a casa, e se a semelhança entre ele e “Jerzy” eram consideráveis, quando vimos as ferramentas do seu ofício ficámos a rir um riso mudo. Ainda por cima este sonhador era pinta-paredes de profissão. Convidou-nos para partilhar o jantar que preparava para si. Um guisado de feijões, disse. Humm mas hoje era suposto cozinhar um jantar português para a família que nos hospedava. Os miúdos esperavam, pelo menos, uma pratada de arroz doce. Então ficámos no compromisso… iamos experimentar os seus feijões, sim senhora, mas depois tinhamos que ir.
Sentámo-nos na acolhedora sala do lar de um homem só. Veio a garrafa de “rakia”, produzido por um qualquer familiar rural, e o delicioso líquido queimou-me a garganta e aqueceu-me a alma. Estavam-se a reunir as condições para um serão especial. Vieram os feijões e estavam simplesmente deliciosos, de forma que à primeira terrina seguiu-se outra, e depois mais “rakia”, e conversámos. Vlado, o “professor” vivia sozinho por opção, depois de ter sido casado durante algum tempo. E falou-nos, do seu ganha-pão que era apenas isso mesmo, e dos seus sonhos ou ausência deles, e debatemos política, falámos da Jugoslávia de antigamente, da sua juventude. Eles contaram-me as suas memórias dos tempos da guerra e discutimos política.
À nossa frente a lareira crepitava, a bela feijoada assentava, e o “rakia” escorria, um após outro. Já sabiamos que estávamos todos metidos em sarilhos e que só uma alma muito benévola nos pouparia ao espancamento por rolo da massa quando abrissemos a porta de casa. Era evidente que não chegariamos a tempo de cozinhar coisissima nenhuma, e assim, perdidos por um, perdidos por mil, fomo-nos deixando estar. Quando finalmente achámos que não se podia ficar mais tempo, era cerca da meia-noite. Aquele foi um serão feito de cumplicidade, de uma partilha mútua de um momento feito do prazer da companhia e da conversa.
Depois, no dia seguinte, partimos para a Eslovénia. Regressariamos passado uns dias, para pernoitar com os nossos novos amigos na véspera do vôo para Portugal. Vlado garantiu que apareceria para se despedir de nós, e assim o fez. Foi mais um jantar agradável, mas aquele serão especial não podia ser replicado, com os miúdos e a pequena confusão. Ficou a memória do “professor”, rematada por um abraço caloroso, quando na derradeira noite ele se despediu, já muito bebido, afastando-se, cambaleante, com uma mão levantada acenando aquele último adeus.
Um mundo de aventuras. Com pessoas perdidas no mundo. Ou não.