A Partida e a Chegada

A ideia nasceu assim, de repente, diria mesmo, num ápice. Filha de um fim-de-semana que deveria ter sido em Tomar e acabou por não ser. Era a distância, era a previsão de aguaceiros, era alguma preguiça. Então apareceu uma opção B, por terras do Alentejo, porque não, aqui perto, com uma meteorologia mais amiga. O plano foi traçado rapidamente e no dia seguinte, Sábado, estávamos na estrada.

A saída já foi tardia, que se impunha a sessão matinal de yoga. A meio da manhã, finalmente, a rolar para norte (sim, para quem vive no Algarve o Alentejo fica a norte) por estradas bem conhecidas… Loulé… Salir… cruzar a serra… atravessar Almodôvar e já na planície alentejana apontar a Castro Verde. E foi à passagem desta localidade que surge a primeira surpresa. Parece ser dia de feira. Feira anual de Castro. Um evento grande na região, desde tempos imemoriais. Carro estacionado, e lá vamos.

Uma saca cheia de melões por 5 Euros. Tentador, mas… er… não. Já a seis queijos curados pelo mesmo valor não consigo dizer que não. E seguem-se figos secos. Numa padaria com muitos atributos compra-se um pão alentejano para empurrar os queijos e umas costas (bolo regional seco, que pode ser simples ou recheado com doce de gila). Depois de percorrer a feira, enorme, que se estende quase até ao topo da vila, chegamos ao centro histórico. Conhecido de outras visitas mas sempre agradável de rever, muito recomendado. São paredes que contam estórias de outros tempos, de uma alegria que existia num Alentejo vivo, sem desertificação, sem envelhecimento demográfico. Casas que despertarão memórias nos mais velhos, traços de uma juventude perdida, feita de muito trabalho, mas também de bailaricos, romances e aventuras.

Cemitério em Trindade
Cemitério em Trindade

 

Cão vigilante em aldeia alentejana
Cão vigilante em aldeia alentejana

 

Ali se encontram um par de igrejas, a câmara municipal e uma série de edifícios apalaçados. O ouvido apurado às conversas de outrem diz-nos que um deles foi agora arrendado para habitação do administrador das enormes minas de Neves Corvo. Mas está na hora de prosseguir, feira percorrida no sentido inverso, uma queijada de requeijão mais e a caminho de novo.

Ainda é um pouco cedo para chegar a Albernoa, que será base deste par de dias por terras do Alentejo. Vamos então um pouco mais à frente, à aldeia seguinte, Trindade. Logo às portas da localidade encontramos o cemitério. Entramos para uma visita rápida à alma colectiva da comunidade. É um cemitério à portuguesa, como seria de esperar. Muito branco, muita flor de plástico e as pequenas imagens dos falecidos, fotografias amarelecidas pelo passar do tempo.

A aldeia dorme, como sempre pareceu fazer todo o Alentejo, mais ainda nas últimas décadas, à medida que a vitalidade do sangue jovem se esvai em direcção a Lisboa ou ao Algarve. Ouvem-se vozes. Uma família que passa lá em baixo, imigrantes de Leste. Para além destes a única vida que parece ali existir é a dos cães que percorrem as ruas. Finalmente, junto à pequena igreja, avistamos um grupo de alentejanos, velhotes, claro, na cavaqueira usual.

Alpendre da igreja em Trindade
Alpendre da igreja em Trindade

 

Albernoa

São quase quatro horas da tarde. O sol brilha, temperatura bem amena apesar de já estarmos para além do meio de Outubro. E faz-se tempo de nos fazer chegar ao lar que será nosso para os próximos dois dias: a Casa na Aldeia.

Albernoa é mais uma aldeia do Alentejo, talvez não tão pacata como tantas outras, pela proximidade à IP2 e a Beja. Apesar de não se ouvir, sente-se o movimento contínuo que ali passa tão perto. Os proprietários – a Catarina e o Luís – esperam por nós. Feitas as apresentações, entre pessoas e também ao espaço, ficamos um bom bocado à conversa, a partilhar ideias, projectos e sonhos, uns em comum, outros, nem tanto. E às tantas estávamos sós, prontos para um pequeno passeio a pé pelas ruas da aldeia, um calcorrear que terminou com um pôr-do-sol à alentejano, daqueles que o meu pai, nascido em Beja, sempre dizia não haver outros iguais.

Pôr-de-sol em Albernoa
Pôr-de-sol em Albernoa

 

PR4 – Passeio Pedestre de Albernoa

O dia seguinte começou cedo. Pela frente, um passeio de 20 km. O PR4 (PR significa “Pequena Rota”) criado pela Câmara Municipal de Beja, que se estende por duas dezenas de quilómetros, atravessando especialmente a mais característica paisagem alentejana: campos planos, que serão dourados de trigo no final da Primavera, mas que nesta altura do ano se encontravam nus, adornados apenas por algumas esparsas árvores, sobreiros e chaparros. Claro que há o ocasional campo de oliveiras. Oh e se os há! Logo o primeiro que avistamos traz-nos uma inesperada entretenga: debaixo de uma das árvores, três homens dedicam-se à recolha da azeitona. Nisto surge uma viatura da GNR em velocidade pouco habitual para aquele tipo de piso. Já se vê, os apanhadores eram clandestinos. Teriam sido denunciados por alguém? Enquanto nos afastamos, seguindo as indicações precisas do trilho pedestre, ainda temos tempo para ver chegar uma pick-up, quiçá o legítimo proprietário do terreno.

Passamos por uma quinta antiga, abandonada, aliás, em ruínas. Entre as suas paredes derrubadas ergue-se uma chaminé, deslocada, resistente, cujo fio vertical se mantém enquanto estruturas que se esperariam mais sólidas colapsaram já. Era uma propriedade de consideráveis dimensões e ficam sempre aquelas questões… o que terá sucedido? Que é feito das pessoas que ali viveram dias felizes e também, certamente, horas menos boas…? O que levou o local a um estado destes?

Cavalos que correm livremente...
Cavalos que correm livremente…

 

Os quilómetros vão passando, descontraidamente. Vemos vaquinhas e ovelhas. Campos limpos pelo fogo, já preparados para a próxima sementeira, para mais um ciclo. Cavalos que por ali andam livremente, sem vedações, sem limites à sua vontade. Chega a hora em que o estômago pede um mimo, e faz-se uma pausa sob uma árvore. Sabe bem estender o corpo sobre o solo nu, sentir a terra a acompanhar a coluna. Descontrair um pouco, despachar um ovo cozido com duas fatias de pão.

O passeio prossegue. Sem incidentes, como uma doce massagem, longa, que percorre o corpo, quilómetro após quilómetro, com o cenário do Alentejo como pano de fundo. Passamos por uma herdade, tão bonita como fedorenta, habitada por cães ferozes que felizmente estão bem presos. Atravessamos a ribeira, uma e duas vezes. Este ano está seca. Deve ser um ponto alto da caminhada quando as chuvas enchem o seu leito de água. Estamos a chegar ao fim. Albernoa já se sente. Está quase. E de repente estamos a entrar na aldeia… deste lado, parece ser apenas uma casa isolada. É aquela junto à qual vimos o pôr-de-sol na véspera. E como sabemos, por detrás dela encontra-se a localidade.

Um postal do Alentejo
Um postal do Alentejo

E o Resto de um Dia…

Vamos descansar um pouco e aproveitar o resto do dia com a ajuda do carro. Nem tomamos a IP2. Saindo de Albernoa há uma estradinha obscura que leva à Mina da Juliana. Da mina resta hoje a aldeia, pequenita, apenas mais uma entre outras. Mas nas suas imediações há um local especial, mágico: a ponte ferroviária. Por esta ponte passavam os comboios que em finais do século XIX transportavam o minério. Um ramal totalmente desaparecido, que deixou apenas este vestígio. Quem descubra esta ponte, sem saber, ficará certamente com um mistério entre mãos.

A ribeira aqui tem água, e veem-se as marcas de cheias do passado. Fica-se por ali um pouco a apreciar o local. Um dos pontos altos desta escapadinha de fim-de-semana. A visualizar com a imaginação as locomotivas a vapor, puxando com esforço vagões carregados de minério, a estrutura a vibrar, até regressar à sua mansidão que se eternizou… até hoje.

Albernoa ao fim do dia
Albernoa ao fim do dia

 

Ainda passeamos mais um pouco, de carro. Vamos a Santa Vitória, a caminho de Beja. Uma curta paragem para visitar a igreja, onde está a ser dada missa. Em redor o oliveiral apresenta uma palete de cores notável: o céu vai-se já tingindo com as tonalidades que anunciam o final do dia, e a rama verde das árvores contrasta com o avermelhado do solo fértil que as rodeia.

E pronto. Uma paragem rápida na capital de distrito para comprar o jornal e segue-se o regresso a casa para um bem merecido repouso.

A ponte ferroviária de Mina da Juliana
A ponte ferroviária de Mina da Juliana

 

Eternecedor
Eternecedor

 

PR6 – Passeio Pedestre de Trigaches

Dia da partida, mas antes, ainda muito para ver e viver. O dia acorda um pouco tristonho, as nuvens baixas são opressivas, depressivas. Mas está tudo bem quando se está aqui. O que fazer? Bem, outro PR de Beja, claro. Se na véspera abordámos o mais longo dos seis, para este dia escolhemos o mais pequeno, o PR6, de Trigaches.

O passeio inicia-se na praça central da aldeia, sob o olhar curioso de alguns habitantes, sempre atentos aos movimentos de forasteiros. Passa-se junto a uma quinta com um alto moinho americano, uma visão pouco comum nesta parte de Portugal. O seu chiar característico enche os ouvidos, perdendo-se eventualmente no silêncio que nos abraça mais para a frente. Este passeio cruza campos de oliveira, a morfologia é um pouco mais irregular.

Logo chegamos a uma bifurcação onde podemos optar por uma extensão ao passeio. Parece que há umas pedreiras abandonas. Não é um desvio considerável, vamos ver. E que boa decisão! A pedreira de mármore que aqui encontramos é fascinante. No enorme buraco criado pelo Homem fez a natureza um lago de águas límpidas, com a profundidade a oferecer-lhe uma bela cor azul. Em redor existem milhares vastos de blocos de mármore e alguns edifícios abandonados.

albernoa-11

No céu evoluem três Alpha Jets da Força Aérea, estacionados na Base Aérea de Beja, com o ventre pintado com as cores da esquadra acrobática Asas de Portugal. Vamos entrando nos edifícios. Armazéns, a central eléctrica. A casa do guarda. Perdida no matagal encontramos alguma maquinaria enferrujada. Provavelmente a exploração desta pedreira esquecida terá sido o melhor da expedição.

Vamos até ao ponto mais alto, onde se avista um dos lagos formados. São três no total, mais uns pequenos buracos de água. A enorme grua ainda se encontra de pé, por enquanto, enquanto o tempo ou os sucateiros não a derrubarem. E com isto o tempo abriu, como que a coroar o ponto alto que vivemos. Já há sol e azul no céu. Foi um fechar em grande.

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Daqui para a frente é o regresso. O passeio é tão curto (8 km) que nem se dá por ele. Chegamos à Trigaches onde o carro nos aguarda. É tempo de voltar a Albernoa, acariciar a casa que nos acolheu com uma limpeza e uma arrumação, para que fique tão embelezada como quando a encontrámos. Comemos qualquer coisa, arrumamos as coisas, lavamos chão. E adeus. Havemos de voltar. Existem mais quatro PR’s para serem percorridos. Até porque a forma como estão organizados é exemplar: marcações claras e rigorosas, percursos bem escolhidos e devidamente documentados no respectivo website da câmara, onde se podem “sacar” os panfletos em formato PDF e as rotas para GPS ou para estudar no Google Earth.

 

A Casa na Aldeia

Como base para esta curta expedição ao Baixo Alentejo seleccionámos a Casa na Aldeia, uma simpática propriedade na aldeia de Albernoa, que infelizmente já não está disponível para aluguer de curta duração como estava.  Tratava-se de uma casa tradicional alentejana, enquadrada numa aldeia genuína e magistralmente recuperada para deleite dos visitantes.

Os ex-proprietários, a Catarina e o Luís, gente como Sérgio Godinho diria, “com um brilhozinho nos olhos”, professores que vieram de fora mas logo se apaixonaram pelo Alentejo e pelas suas gentes, recuperaram o imóvel com as suas próprias mãos, criando um espaço confortável e atraente.

Esta casa de taipa, construção característica da região, data originalmente da primeira metade do século XX. Tem uma área de 80 m e a sua recuperação respeitou a traça original, mantendo o simpático e conveniente quintalinho interior. “Roubando” a informação existente no seu website:

A sul do país, aproximadamente até aos anos 50, a taipa era a técnica construtiva mais utilizada, tanto no Alentejo e Ribatejo (também identificado em Abrantes e Santarém), como no Algarve (a sul das Serras de Monchique e do Caldeirão). Na região em estudo, esta técnica foi muito utilizada no Baixo Alentejo, assim como no sul do Alto Alentejo, existindo no entanto, áreas específicas isoladas no meio da construção em taipa, onde se edificava em alvenaria de pedra (especialmente alvenaria de xisto, como é o caso de Monsaraz) ou em adobe.”

 

 

 

 

 

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