Dia especial. O KB tinha-nos desafiado para uma passeata de dia inteiro lá para sul, para a área onde pensamos ficar uns quantos dias durante a semana que está prestes a iniciar-se. Combinámos sair pelas nove horas, e, mais coisa menos coisa, assim foi.
As ruas de São Tomé estão cheias de vida. A manhã dominical é fervilhante. O mercado está fechado, mas o comércio não se detêm. Como o espaço interior se torna inacessível, as pessoas mostram as suas mercadorias na rua. Os motociclistas-táxi zumbem em todas as direções e nos bairros residenciais que se estendem a partir do mercado, as pessoas andam pelas ruas. Nas muitas igrejas celebra-se a missa, com uma variedade própria de uma cidade onde as variações cristãs se contam às dezenas, com nomes tão espantosos como “Igreja Cristã Redimida de Deus – Santuário do Monte de Cião”. Há homens a prestar a assistência necessária ou possível aos seus carros, pessoas que vão ou vêm das compras, almoços de família que se preparam.
E é no meio desta deliciosa salganhada que chegamos ao edíficio que alberga os escritórios da organização Médicos do Mundo, onde o amigo espanhol do KB, Alberto, nos aguarda para nos acompanhar na expedição.
Voltamos ainda ao coração da cidade para um pequeno-almoço. Enquanto estamos sentados na esplanada o Alberto diz-nos que aquele local, exactamente o mesmo que descobrimos ontem, é um seu local de peregrinação diária. Mas passa-nos mais informação: que na Padaria Moderna os bolos são melhores, mais baratos e maiores. E que mais acima se fazem uns pastéis de nata do arco da velha (não achámos, nem uma coisa nem outra).
Pomo-nos então a caminho, e rapidamente passamos de um mundo que começava a tornar-se conhecido para uma realidade totalmente diferente. A poucos quilómetros de São Tomé, a aldeia de Pantufo, à beira-mar, é o nosso primeiro contacto com uma população “rural”. De repente estamos numa África que, descontados os carros e motas que se cruzam conosco, não terá mudado muito nas últimas décadas. A miudagem anda pelas ruas, uns nús, outros com umas roupitas andrajosas. Os animais – galinhas, porcos, cabras, cães – cruzam a estrada despreocupadamente. E a população anda por ali, nas suas actividades diárias, um pouco de tudo. Junto aos muitos riachos que passamos sobre pontes as mulheres lavam as roupas, estendendo-as sobre o capim baixo que os rodeia. É um cenário que se tornará comum nos dias que se seguem, mas que para já, sendo a minha primeira experiência africana, me faz abrir muito os olhos, procurando absorver cada detalhe daquele cenário que se renova a cada momento, à medida que o Suzuki Vitara do KB evolui pelo asfalto.
Esta estrada, a EN 2, leva de São Tomé até Porto Alegre, na extremidade sul da ilha. É a rota que os turistas que vão ficar alojados no “resort” do ilhéu das Rolas seguem, e sou surpreendido com o bom estado do piso. Tinha lido relatos bem recentes de turistas que afirmavam serem necessárias quatro horas para ultrapassar os cerca de 100 km de caminho. Mas afinal quase toda a extensão da estrada foi recentemente reconstruida com verbas portuguesas, e a viatura rola sem problemas. Há apenas um ou outro troço que por qualquer razão não foram contemplados com a melhoria de pavimento, e o primeiro encontra-se logo a seguir à roça de Água Izé, que passamos sem parar (e, na altura, nem me apercebi onde estávamos). Logo à frente o KB faz um pequeno desvio para nos mostrar a chamada Boca do Inferno.
Trata-se de um fenómeno geológico, um canal escavado na rocha basáltica por onde as águas bravias do oceano entram com grande violência, causando um estrondo enorme e criando, quando o mal está realmente alteroso, enormes colunas de vapor. Ali, segundo a lenda, o Barão de Água Izé (que foi o homem que trouxe para São Tomé a cultura do cacau), quando queria viajar para Portugal, montava no seu cavalo e entrava no canal, que o faria sair, numa extremidade imaginária, já na Europa. Tudo isto é enquadrado por um cenário idílico, com muitos coqueiros e uma praia de seixos negros em forma de meia lua a estender-se à direita. Depois, se, como hoje, for Domingo, pode-se comprar aos gaiatos que ali estão um côco para sorver o leite, por 5.000 Dobras, ou seja, 0,20 Eur.
Voltamos à estrada principal, para a abandonar pouco depois. O KB procura com atenção uma saída, muito discreta, que surge repentinamente entre o mato que já vai sendo selva. A ideia é visitar um casal de franceses, já de certa idade, que compraram ali uma casa de fazendeiros, recuperaram-na e tentaram montar um negócio de turismo de habitação. Sem grande sucesso. Talvez porque o grosso de turistas a vistar a ilha é português, talvez porque encontrar a L’Escapade, como chamaram à propriedade, é o diabo!
Chegámos ao páteo da casa principal, mas não há sinais de vida. O edíficio está em excelentes condições e encontra-se ali parado um velho jipe, mas não se vê ninguém. Saio do carro para tirar algumas fotografias e após algum tempo chega uma senhora africana. Diz-me que os patrões estão para França já há alguns meses e não sabe quando regressam. Está a visita arrumada. Regressamos à estrada.
Estamos já no segmento sul da ilha, e aqui a habitação é mais esparsa. Fazemos quilómetros sem ver uma casa. A vegetação também muda. Como nesta parte de São Tomé chove muito mais, aqui há uma selva que não se encontra a norte. Aumentam os riachos, que descem das montanhas procurando o encontro com o mar. Transportam a água que já caiu copiosamente desde que se iniciou a época das chuvas.
Finalmente temos a primeira perspectiva do Cão Grande, esse gigantesco pináculo de quase 1000 metros que se ergue a partir da planície, escalado apenas uma vez. Pouco depois fazemos uma paragem para fotografias num dos melhores pontos para admirar esta imponente figura: sobre uma ponte que atravessa um curso de água, conferindo um enquadramento especial ao Cão Grande.
Mais uns quilómetros de uma estrada que segue agora rodeada da mais luxuriante selva e chegamos a Porto Alegre. Eu ainda não sabia mas descubro que nos vamos encontrar com um amigo deles, o Paco, uma personagem única com uma longa história que será (parcialmente, porque não é conveniente tornar públicos alguns detalhes) contada mais à frente. Este espanhol das Canárias vive desde há seis meses nesta aldeia, e é já famoso como “o branco de Porto Alegre”. Convida-nos de imediato para ficarmos em casa dele os dias que desejarmos. E ficamos ali um pouco à conversa. Pouco depois chega um grupo de dez enfermeiras espanholas que estão em São Tomé num misto de turismo e trabalho, durante três semanas. Será a primeira de muitas vezes que se cruzarão conosco.
Bom, a conversa está excelente mas temos que ir andando até à praia, antes que se faça tarde. Cruzamos Porto Alegre, uma antiga roça, e saímos pela extremidade oposta, por um caminho de terra enlameada. Essa estrada conduz a quatro praias: Piscina, Inhame, Jalé e Váinha. Eles fazem um desvio para nos mostrar Inhame, onde um são tomense empreendedor construiu um pequeno resort de cabanas de madeira bem equipadas e mobiladas, um pouco caras para a nossa bolsa (50 ou 60 Eur de diária) apoiadas por um bar restaurante à beira da água. O local é idílico. Afinal, é o meu primeiro contacto com uma praia tropical, daquelas que só conhecia dos postais ilustrados e dos painéis publicitários. Não encontramos o proprietário, mas está lá o Pierre, o francês que explora o bar de que tanto gostámos no nosso primeiro serão em São Tomé.
A praia estende-se, arqueada, de areia limpa, numa estreita faixa logo atalhada por uma linha de coqueiros e outras árvores exóticas. O restaurante, montado sobre um estrado de madeira, está a uns escassos metros da água, e, ainda mais perto, umas quantas mesas individuais, onde uns quantos casais disfrutam de um almoço romântico.
Damos ainda um salto a Jalé, o que é importante, pois é ali que planeamos passar uma ou duas noites, numa das três cabanas que compôem o Eco Lodge Jalé, montado por franceses há uns anos, e agora explorado localmente. Um velhote que cumpre as funções de guarda deixa-nos ver o interior. Não há muito a dizer. É uma pequena cabana de madeira, com grandes frestas e aspecto globalmente decadente, com duas camas mandadas lá para o meio. O alojamento é muito mau mas o cenário compensa tudo. A praia é ainda mais bonita que Inhame, apesar de não ser própria para banhos.
Chegamos por fim ao destino supremo para este dia: a praia Piscina. E porquê este nome? Porque numa das suas extremidades uma série de rochas cria uma piscina natural, de água limpa e calma, com uma extensão perfeita para nadar um pouco, precisamente, como numa grande piscina. É preciso contudo ter cuidado: embora raramente há ondas mais fortes que podem galgar a barreira natural e colocar os banhistas em risco. Quanto à praia fora deste recinto protegido, é um pouco perigosa, mas mesmo assim o Albert aventura-se durante um bocado.
Caminho em êxtase pela areia, até à ponta oposta da praia. Não é uma grande caminhada, talvez duzentos metros. Em alguns pontos as árvores vão mesmo até junto da água, uns escassos centímetros de areia a separar o oceano da selva. Entretanto o KB estendeu uma rede entre duas árvores e tira uma soneca. Ao longe as núvens adensam-se. É capaz de vir chuva. Mas esta nunca chega. O dia está perfeito para estas andanças, com o céu parcialmente nebulado a proteger-nos do sol escaldante, mas a sua metade azul a conferir cores perfeitas ao mundo que estamos a descobrir. Quanto à temperatura, quente, como sempre. De tal forma que experimento a água, ideal, fresca sem ser gelada, a convidar a um banho. Chapinho um pouco na piscina, só pela experiência, refrescado que estou.
Terminada a sessão de praia regressamos a Porto Alegre, onde os meus companheiros de expedição planeiam tomar uma refeição. Chegados lá, nem Paco nem enfermeiras espanholas. Uns telefonemas depois e o nosso novo amigo canário junta-se-nos. As raparigas já partiram, mas não precisamos delas para nada. Ocupamos uma mesa na tasca local e refeição é servida. Peixe, arroz, banana frita. Pela tasca correm gatos e cães. Lá fora a vida decorre como sempre. Crianças catam-se de piolhos. Os adultos, quase todos pescadores, vão preparando as coisas para mais um dia de trabalho. Fico-me pela banana frita.
Quando acabamos a refeição o sol já vai baixo. Torna-se evidente que teremos que fazer boa parte da viagem já de noite. Mas não surgem problemas no regresso. Chegamos a São Tomé sem novidade, deixamos o Albert em casa e seguimos. É um dia para ir dormir cedo, já abraçando o ritmo horário são tomense, e cansados pela longa jornada. Às 22 horas, caminha!