6 de Janeiro de 2020, Segunda-feira

Um dia excitante à vista: será a minha primeira viagem em shiva. Há quatro anos tinha visto estas impressionantes viaturas na praça central de Santa Fé de Antioquia e isso tinha constituído uma das coisas mais espectaculares dessa outra viagem. Agora vou mesmo fazer parte do filme, vou viajar.

Há duas partidas diárias de Jericó para Jardin. Para nós será a da manhã, bem cedo, pelas sete e meia. Até poderíamos esperar no hostel porque a rota que a shiva leva trá-la pela estrada que passa à porta, mas prefiro adiantar-me, matar a angústia da espera, do “vem ou não vem?”, até porque por vezes não vem mesmo. Condições da estrada e problemas mecânicos podem causar o cancelamento da viagem, e espero que não me toque essa fava.

Não deve haver problema. São 7:15 e já estão no local, na lateral da igreja, mesmo junto à praça principal. Duas shivas, cada uma para um destino diferente. O ambiente faz lembrar a antiga largada de navios dos portos. Há uma actividade intensa na área: pessoas que tomam o pequeno-almoço antes da viagem, passageiros que tomam lugares, ajudantes que acomodam as cargas no tejadilho, acompanhantes que vêm para se despedir, funcionários que conferem listas.

Maravilho-me com a decoração daqueles veículos, miro detalhes, sinto euforia que me rodeia. E depois chega o condutor, o capitão, o comandante daquele navio das montanhas. Faz um sinal pachorrento. Todos a bordo, vamos partir.

Não há mais estrangeiros. A shiva vai pouco cheia, talvez a um quarto da capacidade. Ao meu lado vão dois jovens turistas colombianos, sofisticados, gente da cidade. À frente, uma senhora que fala com toda a gente. Mais tarde faz passar pelos passageiros um saco de rebuçados. Sorri, um sorriso desdentado.

A primeira parte da viagem já conheço, da véspera. Depois entramos em território desconhecido. Por vales e montanhas vamos ganhando altitude e a paisagem é sempre, mas sempre, fascinante. É a beleza da região cafeteira, o coração da produção de café colombiana. Pelos montes vêem-se os pontinhos brancos das fincas, quintas onde para além do café se cultivam bananeiras.

Por vezes passamos mais próximo de uma destas casas e posso ver a beleza da sua arquitectura. Locais de calma e tranquilidade. Mas também, certamente, de vidas árduas.

Passamos junto a animais de quinta, a homens que tratam dos arbustos do café. O céu está limpo, muito azul, e a luz enche a paisagem de cor e alegria. Que belo dia!

Há paragens para largar e recolher passageiros e para isso qualquer ponto é bom. Por vezes surge um veículo no sentido oposto e é preciso manobrar um pouco. Passa uma shiva por nós, a estrada é estreita para os dois, torna-se necessário uma certa ginástica.

Durante todo o percurso não se vê o asfalto, que só surgirá já a poucos quilómetros de Jardin. É esta a sina das shivas, servir populações rurais, passando por estradões que não permitiriam a passagem de um autocarro normal. Apesar de, mais tarde nesta viagem, ver em primeira mão como é que um autocarro normal consegue ultrapassar troços onde eu não me meteria com o meu 4×4.

Mais ou menos a meio da viagem chegamos a uma aldeia. Buenos Aires. Como a bela capital argentina. Faz-se uma paragem. Sai toda a gente, vão para a loja / tasca mesmo ali em frente. É tempo de pequeno-almoço. Um louco assedia os passageiros com a sua altercação furiosa.

Esperei que o maluco se afastasse para saltar para a rua. Que local interessante! Há cavalos e mais à frente um homem lava o seu, como quem leva o carro à lavagem automática.

Vejo a igreja, no largo, mesmo ali ao lado. Em Buenos Aires, nesta Buenos Aires, é tudo mesmo ali ao lado. As pessoas têm ar de perdidas. Como se isto fosse um entreposto saído de Apocalypse Now. Há mais loucos, não tão perigosos, mas há. Uma certa aura negativa paira sobre aquela comunidade, mas ao invés de lhe retirar interesse, só o aumenta. Não iria tão longe ao ponto de dizer que gostaria de ter ali ficado uns dias, apesar de estar seguro que seria uma experiência única. Mas ficou-me na memória. So long, Buenos Aires, Antioquia, Colômbia.

De novo na estrada, a cortar aquela paisagem de uma beleza sem fim, vales e montanhas, encostas cobertas de arbustos de café, sol, farrapos de nuvens branca no céu, como ovelhas num pasto verde.

Devagar a aventura da shiva aproxima-se do fim. Logo chegamos ao alcatrão, já estamos próximos de Jardim. E, por fim, é o terminal.

Jardin pode ser uma aldeia. Cidade não é. Mas a verdade é que a estação rodoviária fica afastada do centro. Os rapazes da cidade que vinham na shiva já estavam em negociações com um condutor de táxi. Custa-me a acreditar que, tal como nos diziam, não exista um autocarro ou carrinha a fazer o transporte dali para o centro histórico, mas o valor do táxi é tão pequeno que alinhamos em dividir e vamos todos.



Ficamos junto à praça central. Agora é encontrar o nosso alojamento, relativamente afastado. Está um pouco de calor, até porque estamos no pico do dia, mas como as mochilas são leves caminha-se bem.

Jardin, como quase todas estas povoações, tem uma planta geométrica. Andamos uns quarteirões até que chegamos à morada. O nosso alojamento é discreto, uma casa particular, que só encontramos depois de perguntar no pequeno hotel da frente. Boa onda, anfitriã muito simpática e hospitaleira.

Seguiu-se um momento de repouso mas a vontade de sair a ver Jardim era grande. E tanto que havia para explorar, não só na própria povoação como em seu redor.

Andámos um pouco pela aldeia, vendo as suas casas coloridas. Afinal, Jardin, tal como Jericó, consta de uma lista restrita de aldeias históricas da Colômbia. Todas elas são bonitas.

Descemos até ao limite do casario, atravessámos uma ponte. Ainda pensámos e seguir por ali, mas decidimos fazer um outro passeio, até ao topo do Cristo. Que aqui também o há.

Caminhada super agradável se bem que algo exigente, quase toda por um trilho íngreme. Para lá se chegar vai-se até à orla de Jardim, desce-se até ao regato. Só este pedacinho vale por si. Há uma velha ponte, muito sossego. Pouca gente vem para este lado. As águas correm, muito depressa, espumosas.

A vegetação é muito verde, como se pode ver na fotografia acima. Depois, mais acima, entramos numa plantação de bananeiras. A vista começa-se a revelar à medida que subimos. A arfar, porque a altitude faz dano e é mesmo sempre a trepar.

Passo por um senhor que, sendo colombiano, vai em maiores dificuldades. Mas todo o esforço é compensado: no topo há um café-restaurante. Numa longa mesa senta-se um grupo considerável de locais que acabou a refeição e estão muito bem regados. Ouviam-se à distância e agora posso vê-los. Há vários estrangeiros.

Bebo um sumo, estou a adorar o local, é magnífico. Podia ficar ali para sempre, a bebericar sumos e a sorver as vistas. Lá em baixo avista-se todo Jardin e no céu descem os pontos coloridos dos engenhos de parapente.

Ali, como em Jericó, encontra-se uma estação de um sistema de teleférico que já não funciona. É mais sossegado e a vista de que se usufrui dali é igualmente boa.

Os borrachos acabam por se ir embora e o ambiente fica mais tranquilo. De repente estamos quase sozinhos. Mas também para nós se faz tarde. É hora de iniciar o caminho descendente.

Sempre para baixo, cruzamo-nos com dois jovens ocidentais e somos ultrapassados por alguns colombianos que vão a grande velocidade.

Chegamos ao centro de Jardin. Na praça principal a animação é imensa. As esplanadas, e são muitas, enchem-se. À medida que a noite chega vêm também os carrinhos de vendas, de tudo e mais alguma coisa. Uma feirinha levanta-se, e ali se podem comprar petiscos, sumos de fruta.

Há na praça uma pastelaria e um supermercado. Tudo o que precisamos para sobreviver ao serão e à noite.

Parece que toda a população saiu à rua e se concentra ali. É uma cena de outros tempos, de quando era normal no meu mundo a comunidade se reunir e conviver. Em Jardin faz-se isso, talvez todos os dias, ainda mais em período de fiesta. É um gosto sentar ali, num banco de jardim, observando pessoas.

Chega a hora de descansar e penso que é difícil escolher entre Jericó e Jardin. Apesar de ter visto alguns estrangeiros, creio que Jardin é menos turística. A animação, essa, é de igual calibre, talvez menor. São ambas aldeias muito bonitas. Jericó é possivelmente mais artificial, mais para visitante ver, dá-me a ideia que Jardin acaba por ser mais genuína. Apenas algumas impressões. Outros poderão sentir o contrário.

Foi um dia bem passado.

2 COMENTÁRIOS

  1. Belas fotos
    Bela narrativa de viagem.
    Obrigada pela gentileza de nos mostrar lugares tão longínquos, que, de outra maneira não saberia que existiam.

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