30 de Maio

Vai ser um longo dia. Tomo o pequeno-almoço com a minha anfitriã, sentadinhos no sofá, mesa improvisada sobre a almofada do meio, com um lenço a fazer de toalha. Do temporal anunciado para Iasi, nem sinal. Finalmente os deuses do clima me bafejam com alguma generosidade.  Lá fora o céu é predominantemente azul, e estou entusiasmado. A Lacrimoara ajuda-me a comprar um bilhete diário para os transportes públicos, que custa a agradável quantia de 1,50 Eur. Mais ou menos o mesmo que se paga para uma simples viagem em Praga.

O meu primeiro destino está definido: o jardim botânico, na periferia norte da cidade, por onde na véspera entrei na cidade, vindo da Moldávia. O pimeiro autocarro que passa vem cheio à pinha. No segundo, um pouco melhor, consigo encontrar um espacinho. Que sensação! Há anos, muitos anos, que não ando num autocarro feito lata de sardinhas. A sério! Em Praga as coisas estão preparadas para evitar esta saturação e… sei lá… Lisboa já foi há tanto tempo….

Uma boa parte dos meus companheiros de viagem são estudantes, e há medida que o autocarro vai passando frente a faculdades, o espaço torna-se mais abundante, até que começam a vagar cadeiras e sento-me por um bocado. Sigo até à última paragem, pensando na raridade desta situação: utilizar transportes públicos em vez de caminhar… poupo uma marcha de 5 km que me retiraria bastante disponibilidade física para o resto do dia, mas imagino todos os detalhes que estou a perder ali fechado.

O GPS aponta-me a entrada do parque botânico, tal como indicada pela Lacrimoara no Google Earth, e lá está ela, com impressionante precisão. 1,25 Eur. E sinto-me incrivelmente bem. A passarada canta com grande vigor, o dia está agradável, e a frescura que emana daquela vegetação eleva-me a alma para um patamar bem alto.

Pouco depois chego ao jardim de rosas. Impressionante. A época é a ideal. Quase todas as roseiras estão em flor, cada variante bem identificada por um pequeno cartaz. E há centenas de variedades. Alguns homens dão retoques nos pés de roseira, e a sua algazarra é a única nota fora do contexto de tranquilidade que pauta o local.

Passeio um pouco ao sabor do acaso, passo lento, usufruindo do prazer que tudo aquilo me está a proporcionar. Acabo por me afastar da zona mais arranjada do parque, desco uma escadaria ampla que me parece infinita e vou ter a um belo lago repleto de juncos, onde um exército de rãs coaxa alegremente. Num pontão equipado com dois ou três bancos alguns idosos conversam. Passo por detrás deles e interno-me nos bosques. Exploro uns quantos trilhos antes de regressar à orla do lago, onde me sento na erva,  lendo por um bocado.

Sinto que está na hora de continuar. Dirigo-me para a saída secundária do parque, de novo marcada pela minha amiga com precisão milimétrica. Agora a missão é encontrar o cemitério judeu, tarefa que se revelará árdua. Caminho durante várias centenas de metros por uma rua ladeada de edíficios habitacionais semi-degradados. O asfalto está esburacado, e à sua beira deitam-se cães vadios. Como tantas vezes senti na minha anterior viagem pela Roménia, bairros degradados e pobreza não significa que seja perigoso andar por ali.

Quando finalmente chego à entrada do cemitério, desilusão: um guarda não me deixa entrar. Estudo um pouco melhor o mapa em papel. Não estou habituado a mapas destes. Mas consigo perceber que decididamente o cemitério judeu tem uma entrada autónoma. Onde não me deixaram passar foi no portão que dá acesso ao cemitério ortodoxo. Mas como chegar onde quero é uma icógnita. Depois de muito calcorrear avisto a entrada do cemitério judeu, que surge da brumas como um milagre que se materializa. Mas… está fechado! Vejo um trabalhador que faz uma pausa na parte de dentro da vedação e faço-lhe sinal para que me abra o portão mais próxima. Ele faz-me perceber que me devo dirigir a uma outra entrada, uma centena de metros à frente. Assim faço, sob o seu olhar atento e sob os seus gestos que são um misto de encorajamento e esclarecimento. Aparentemente estou agora na porta certa mas está um cadeado a trancá-la. Vinda não sei de onde ouço uma voz colossal que chama: “Olga!!!”. E a Olga aparece. Uma velhota de ar teso, que me olhar interrogativamente, como quem diz “mas que diabo queres tu daqui?”.  Pergunto-lhe meio em romeno meio em português se é possível visitar, deixando o mapa  bem à mostra, como que esperando que tal indique um estatuto de turista, logo, algum privilégio. Depois de uns segundos de ponderação, durante os quais receei um veredicto negativo, a Olga assentiu na minha entrada: “Da”, disse ela. E, logo de seguida, vendo-me caminhar em certa direcção, descoseu-se um pouco com um inglês inesperado. “No, no…” enquanto apontava o sentido oposto acentuado com um esclarecedor “Very important, very important”.

Em suma, esta visita mereceu cada suado hectómetro caminhado, e foram muitos. Existem campas antiquissimas, enquanto outras se estendem pelos matos adentro, que vão engolindo lentamente partes do cemitério, para o qual não parece ser possível garantir a manutenção devida. Estando num alto oferece a espaços vistas interessantes sobre a cidade, lá em baixo.  Caminho por um trilho largo mas tenho que desistir. Fico com a ideia de ter ultrapassado os mil metros por ali adiante, mas as pedras tumulares sucedem-se, sem sinal de estarem a terminar. Regresso à porta da Olga, satisfeito com o sucesso. A senhora não está à vista, mas a porta está destrancada e abandono o local.

Apanho um autocarro para o centro. Saio na praça principal da cidade, chamada Unirii, como todas as praças principais de todas as cidades da Roménia. Ando por ali a sentir o pulso da vida local. Sento-me a beber uma cerveja. Pago e começo a andar em direcção ao majestoso palácio do Centro Cultural. Pelo caminho envio um SMS aquele que poderia ter sido o meu anfitrião em Iasi, mas acabou por não ser. Proponho um encontro para uma cerveja e logo recebo a resposta: dentro de uma hora em frente ao centro cultural.

Tenho tempo de sobra. Vou observando detalhes. Vejo a fachada do teatro, do meu lado esquerdo, e vou até lá tirar umas fotos. Há dois homens com máquinas fotográficas no jardim fronteiro, e um deles aproxima-se. Fala-me, em romeno, claro. Mas logo muda para inglês. O contacto não tem qualquer outro objectivo para além de trocar umas impressões com um “colega” fotógrafo. Diz que é profissional, faz fotografia de casamentos. “E tu?” pergunta ele. “Eu? Eu sou só um turista”, respondo. Mais tarde, quando abandono o local, cruzamo-nos de novo, olhar cúmplice, polegar levantado, sorriso na face.

Vou-me deitar debaixo de uma árvore junto ao ponto de encontro e deixo-me estar ali a ler durante os cerca de 20 minutos que faltam. O Alex aparece na hora certa. Este jovem é uma criatura de grande interesse, como eu já compreendera pelo ser perfil “online”. Caminhamos um pouco, bebemos uma cerveja juntos, e ele convida-me a ir ver as vistas do seu apartamento, localizado mesmo ali em frente. Do décimo andar avista-se toda a cidade em redor. Parece que um amigo dele vai aparecer a qualquer momento, quer-me conhecer. O Alex começa a tocar música. Primeiro uma pianada clássica, depois algo em estilo barroco, mudando em seguida para uma sonoridade medieval. Chega o Bogdan, e junta a sua voz à música. Sou brindado com uma balada escocessa de tempos imemoriais. Que tarde espantosa esta! Fico na companhia do Alex e do Bogdan até que tenho que me encontrar com a Lacrimoara. Vamos às compras. Hoje o jantar está-me atribuido. No mercado ela convence uma vendedeira moldava a ficar-me com o que me sobrou de dinheiro daquele país, que estranhamente não e trocável nas casas de câmbios de Iasi.

O jantar corre bem, a feijoada está óptima, e até a aletria que improvisei não está nada mal. Ao serão trocamos músicas e videos, eu, mostrando os nossos fados de Coimbra. Madredeus, Mafalda Veiga.. ela, dando-me a ouvir bandas romenas da sua juventude, que não é muito distante da minha.

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