Essaouira, 21 de Janeiro de 2015

O dia começou cedo, claro. Havia um autocarro para apanhar, era na outra ponta da cidade e partia às 8:30. A marcha era de uns 5 km, portanto, uma hora de caminho, isto com uma certa margem de conforto porque na realidade a distância a andar não deveria ser superior a 4 km. Como plano B, se as coisas corressem mesmo mal, haveria sempre um táxi para apanhar.

Mas não correram, e de tal forma que mesmo antes de nos dirigirmos à central da Supratours, um pouco adiante da estação de comboios, mesmo encostada ao hotel Ibis, ainda houve tempo para dar uma vista de olhos à interessante arquitectura do Teatro Royal, um edíficio bem mais recente do que aparenta. É na realidade já do século XXI.

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Há que pagar uma pequena taxa por cada volume de bagagem a carregar no porão e depois, a caminho. Lugares de honra, aqueles por detrás do condutor, elevados, com vista priviligiada para a frente.

O autocarro vai saindo da área metropolitana de Marrakesh, entrando no espaço rural, amplo, plano, com as montanhas do lado direito, mas lá longe, com as suas encostas brancas de neve e cumes elevados, perdendo-se no encontro com uma fina camada de nuvens.

Foram atravessadas algumas aldeias e pequenas cidades. Na beira da estrada algumas pessoas vestidas à maneira marroquina, cheias de cor. Há rebanhos e pastores e num ponto as cabras ocupam os galhos, mesmo os mais elevados, de duas árvores. Uma visão surpreendente.

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A paragem incontornável – que há que fazer dinheiro também com as comissões – é para comer, num restaurante de beira estrada, dentro de uma pequena localidade. São quinze minutos que se alargam um pouco, e que bem dispensava. Nem me levantei do lugar, que lá fora parecia fazer frio.

Pelo GPS vou controlando a aproximação a Essaouira. Já não pode faltar muito, e de súbito, ao virar de uma curva, lá em baixo, o mar e a cidade. No interior do autocarro sente-se a comoção dos passageiros perante a visão. Há um burburinho que percorre as fileiras. Toda a gente quer chegar ao fim daquela viagem de duas horas e picos.

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Entramos na cidade junto ao mar, passamos junto à enorme praia, que se extende em meia-lua e tem um areal imenso. E por fim detemo-nos. Afinal, ao contrário do que tinha lido, a estação da Supratours não fica assim tão longe da medina. Na realidade, fica mesmo junto a um dos portões da cidade antiga. Sem problemas – nem mesmo o assédio de taxistas e afins é intenso – entramos por aquele arco e estamos na antiga Essaouira.

Há ali uma acção que para mim é das mais poderosas quando viajo: um encontro com o imaginário. E em Essaouira não só se dá essa reunião como é múltipla! Assim que entro naquele espaço a imaginação flui para outros tempos, para uma época em que os Portugueses controlavam estas e muitas outras terras, em que o meu povo era grande a uma escala global. Com facilidade vejo-me ali por meados do século XVI. Foi Diogo de Azambuja que a pedido de D. Manuel dirigiu a construção da fortaleza de Mogadoro. Contava já na altura com 70 anos, uma idade considerável naqueles tempos. Levou-lhe a tarefa mais sete anos e regressou a Portugal com a missão cumprida. Durou pouco, contudo, a presença dos nossos naquele pedaço de África. Nem uma década tinha passado quando a situação militar se tornou insustentável e a praça-forte foi abandonada.

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Ao contrário do que se possa pensar, nenhuma das fortificaçãoes que ainda existem por ali são parte do complexo construido pelos portugueses. Esse foi deixado ao abandono, usado esporadicamente por forças locais, e, por fim, completamente demolido no século XIX, para dar lugar à chamada “Scala del Mar”, um bastião que pode ser visitado a troco de 10 Dirham.

Da memória da presença lusa tudo o que se pode mencionar é uma placa que assinala a existência em tempos idos da fortaleza… e uma igreja perdida numa viela da medina, mas isso é coisa para se contar mais tarde.

E portanto, falava eu de imaginário e de me ver ali como um Luís de Camões perdido em partes remotas do Império, enfrentando dia após dia vagas de mouros. Mas não é só isso. Não é apenas um regresso às matérias da escola primária, que a apanhei nos derradeiros dias do Estado Novo, repleta de feitos heróicos e da sublimação da presença portuguesa pelos cinco continentes. Não, há também, de novo, a sombra de Tintim. E como eu o vejo por ali, raptado por traficantes berberes em conluiu com um dos seus viscerais inimigos. Deixado encerrado numa cave de Essaouria, libertado pelo/a valoros/a Milu, seu cão/cadela de todas as aventuras.

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E foi com estes sonhos a flutuar no pensamento que palmilhei duas das ruas mais animadas da cidade, em busca do hotelzinho familiar onde ficariamos duas noites. Após um momento de desorientação, peguei no mapa, reagrupei ideias, e sim, descobrimos o hotel Der Latigeo, que viria a amar. A localização não poderia ser melhor, no meio da medina mas numa rua tranquila. Eu disse tranquila? Sim, seria calma se não fossem os “putos” que jogavam à bola quase todo o dia. Um conselho se visitar a cidade: fique no Der Latigeo mas certifique-se que a janela do seu quarto não dá para a rua.

O proprietário é George, um francês casado com Latifa, uma marroquina. São três andares, dois quartos por piso, e no topo um terraço muito agradável. O nosso é logo no primeiro nível. Gosto. Sinto ali, muito subtil, um toque francês. A minha imaginação está ao rubro e o ar marítimo, os gritos das gaivotas, já me transportam para uma cidadezinha da Bretanha nos anos 60.

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É só o tempo de arrumar as coisas numa gaveta, respirar fundo e logo de volta à rua. Existe uma via principal na medina de Essaouira. Liga dois dos seus portões essenciais, o que vai dar ao mar e o outro, na direcção oposta. Depois, paralela, uma outra rua, digamos a segunda na hierarquia, de onde precisamente partia o beco onde se encontra o  Der Latigeo. São as vias principais, as mais turísticas, as mais comerciais. Mas mesmo assim há espaço para distinções. Na principal, a parte a Este alberga o souk local e ai existem turistas, claro, mas não comércio talhado para eles.

É de notar que Essaouira é uma veterana no que diz respeito a turismo ocidental. Há umas valentes décadas atrás foi cenário de uma vaga de visitantes, especialmente europeus, que chegaram numa onda hippy, atraidos pelo mar, pela magia do local, pelas gentes, tão diferentes, essencialmente amigáveis. Hoje já não resta muito desse espírito, apesar de se notar que a malta estrangeira é mais alternativa do que noutras partes de Marrocos.

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Há portanto uma indústria de turismo sólida nesta localidade, tornando-se mais vísivel na zona da medina que está próxima do porto. É ali que se encontram os cafés para agradar a ocidentais e as lojas de souvenirs e de peças tipicamente marroquinas. Também perto da Scala del Kasbah abundam as lojinhas de artesanato e pintura, assim como alguns estabelecimentos hoteleiros mais caros.

Mas estou-me a perder na narrativa. É o preço do entusiasmo. Gostei bastante de Essaouira. Portanto, saimos do hotel, fomos até ao porto. O chamamento do mar, que ali tinha um poder adicional, uma quebra com a monotonia de Marrakesh. O espaço desafogado logo após ultrapassar a muralha da medina cativou-me. À minha frente as fortificações que vieram substituir as portuguesas, os gaiatos que brincam entre os barquitos de pesca costeira, as gaivotas ao peixe, uns quantos turistas.

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Logo alguém se aproxima com um tabuleiro de bolos, fala do produto, aponta para dois tipos, acastanhados, como se fossem de chocolate, mas que são afinal de…. haxixe. Pago os 10 Dirham para visitar a torre e a muralha do porto. O mar está revolto. Talvez seja sempre assim, agrada-me. De lá de cima tenho uma vista maravilhosa. Sobre o porto, mesmo ali ao lado, e sobre a costa muralhada de Essaouira.

Visitamos os pontões onde embarcações de maior porte estão acostadas, as tripulações preparando mais uma jornada, trabalhando com as redes, fazendo as pequenas reparações, acomodado caixas de peixe vazias. Há algumas bancas que vendem pescado fresco, mesmo ali, acabado de desembarcar. Um turista asiático apresenta uma lista com o que quer comprar. Não sei se foi bem sucedido.

Há imensos gatos. Estes, os do porto, têm um aspecto paupérrimo. Parecem doentes, enfraquecidos. Mas outros, lá para o interior da medina, parecem reis. Os felinos parecem ser os animais sagrados de Essaouira. Dormitam em cima da mercadoria das lojas, saltam para o colo de clientes de cafés. “Uma vida doce”, como disse, em francês, um comerciante, apontando com o queixo para os dois gatos que dormiam sobre os seus tapetes. Estão por todo o lado, totalmente habituados aos humanos.

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Separamo-nos um pouco. Gosto de um momento sozinho, fotografo melhor, sinto as coisas de outra forma. Sigo pela outra rua, a tal paralela, que sigo até ao fim. Depois de passar por uma série de vielas obscuras, passagens cobertas, curvas sinuosas, a via perde-se num terreiro de aspecto tenebroso, onde gente miserável se junta. Sinto ali o ambiente da marginalidade social, serão talvez sem-abrigo, com algum tráfico de droga à mistura.

Vou dar ao portão da cidade. O bulício é enorme, e de novo o imaginário. Se esquecer uma ou outra motorizada, uns quantos estrangeiros e uma mão cheia de marroquinos trajando à nossa maneira, poderia estar ali há cem anos. Ou duzentos. Um Marrocos diferentes para mim, conhecedor apenas das “grandes” cidadez, Fez, Meknes, Marrakesh e, vá, de locais de média dimensão, como Moulay Idriss. Mas ali há um perfume diferente, que resulta da mistura entre a cultura berbere e a influência marítima. É a actividade piscatória, o comércio virado ao mar.

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Marco mentalmente uma praça com uns restaurantes agradáveis, vá, pra turista, mas de bom gosto, com cores vivas, terraços anunciados, preços razoáveis. E é ali que vamos depois de terminada a volta por Essaouira. O dia já não está longe de acabar. São três horas. Passaram-se sensivelmente quatro desde a chegada à cidade e contudo já tanto aconteceu, tanto foi visto.

Ao sol tomámos uma bebida, vagarosamente. Avancei um pouco de leitura. Depois, forças recuperadas, voltámos às ruas, claro. E chega a um ponto em que faltam as palavras. Porque as coisas já foram descritas, e dá gosto de as repetir, simplesmente. Uma das razões de fascínio de Essaouira é aquilo a que começo a chamar de Fenómeno Hoi An – uma pequena cidade vietnamita a todos os títulos adorável. É o casamento entre tradição e turismo, de forma harmoniosa, dois mundos vivendo lado a lado, em harmonia. São locais onde a vida local subsiste a par dos hoteis e das lojas de artigos para turistas, oferecendo o melhor dos dois mundos.

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Portanto, saindo um pouco daqueles troços talhados para os visitantes estrangeiros, tive ali naquele dia momentos deliciosos. As coisas do costume: os miúdos que jogam à bola, as vizinhas que cortam na casaca, os páteos que escondem uma bolsa de vida local, o artesão genuino que martela, o homem que passa de bicicleta sempre a abrir. E as ruas, em si, por si. As portas, velhas de séculos, as cores diversas que trazem uma lufada de ar fresco depois de quatro dias na “cidade vermelha”.

Acabámos o dia na tal Scala del Kasbah. Gosto de comparações e veio-me logo à ideia o malecon de Havana. Como local de reunião informal da comunidade. Sitio de pouso de amigos e namorados, abrigo para sonhadores, ponto de inspiração para almas atormentadas. O mar bate, sempre irado, içando colunas de espuma branca a alturas incriveis. De tal forma que apesar de não distar muito mais do que um par de centenas de metros, mal se vê o porto, tamanha a quantidade de água que anda pelo ar.

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Gostei imensamente deste local. Inspirou-me como a tantos o terá feito antes. Não foi por acaso que foi escolhido para a filmagem de algumas cenas da popular série televisiva Game of Thrones. E foi ali que dois dias depois me quis despedir de Essaouira.

Mas para já a noite caia. E a fome chegava. Tinhamos mirado um sitiozinho interessante, uma espécie de tasca marroquina, pomposamente chamada de “Café Berbere”, com indicações a partir das ruas envolventes mais movimentadas. Localizava-se numa viela obscura, não muito longe do único museu que descobri em Essaouira e agora apetecia ir lá espreitar, comer qualquer coisa.

E em boa hora assim ficou decidido porque a experiência foi infinitamente positiva. Aquilo é um quadradinho com três mesas de café bem apertadas. Mas o ambiente era adorável. Defronte, um velhote sentava-se com um queijado, e toda a gente se ia amigavelmente meter com ele, que respondia ameaçando com o pau, também na brincadeira. Estava dado o mote. Sentámo-nos e encomendámos uma porção de grão e uma de lentilhas, e, claro, um chá de menta.

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A comida estava óptima, era mesmo o petisco que apetecia, genuino, gostoso, barato, quase oferecido. Numa outra mesa um negro muito negro acabava um prato de, creio, uma mistura de sardinhas esfiadas com ovos, que, confesso, tinha muito bom aspecto. Mas o melhor no local eram as pessoas. Aquilo poderia ser o cenário de uma soap opera ao género de Friends. Os “vizinhos” não parávam de entrar e sair e cada um acrescentava algo ao quadro. Não conseguia parar de sorrir e de me deliciar com tudo aquilo. Uma imagem de perfeição.

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À saída, no topo da viela, já numa rua mais concorrida, vimos um restaurante que cativou pelo aspecto e pelo conceito: todos os dias projectavam um filme e o preço de cerca de 8 Eur incluia a visualização da pelicula e o menu completo. Uma ideia para o jantar do dia seguinte. Que nunca chegou a acontecer porque preferimos regressar ao Cafe Berbere.

Ao serão ficámos na sala comum do hotel.  Impossível permanecer no quarto e relaxar. Os putos na rua faziam uma barulheira incrivel. A cozinha estava ao dispôr dos convidados e preparámos o nosso próprio chá de menta com um ramo fresco que trouxémos do mercado. Conhecemos dois cavalheiros ingleses que viajavam sozinhos, e que nos fizeram companhia. E termino este artigo com mais uma série de imagens das maravilhosas portas de Essaouira.

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4 COMENTÁRIOS

  1. Ricardo: pelas embarcações bem podia ser num porto numa localidade Portuguesa; as portas lindíssimas pintadas de azul e contornadas de amarelo ou vice-versa, faz lembrar a nossas vilas do Alentejo e do Ribatejo, também. O nosso imaginário é caminhar pelos caminhos outrora percorridos e vividos pelos nossos antepassados. Apesar de algumas portas necessitarem de restauro, não deixam de ser belas…

  2. olá ricardo. quantos días esteve em essaouira?
    eu estivee 3dias em marrakech em janeiro deste ano e gostaria de ir a essaouira numa próxima vez.
    encontrando-me actualmente a residir no estrangeiro, tenho a facilidade de voar em lowcost directamente para essaouira. será que 2 dias é demasiado, sendo que 1 dia parece ser pouco para relax e observar com calma a cidade e as gentes à beira do mar. também não vi todos os landmarks de marrakech e talvez equacionasse voltar uma segunda vez, no entanto, com tanto para ver por marrocos, talvez equiacionasse outras paragens, tipo rabat, mas há sempre aquele handicape dos transportes e de ter de ir possivelmente a marrakech para ir até rabat, não sei bem. como sugere?
    obrigada

  3. Há Essaouria!! Ja se passam mais de 2 meses que deixei o Marrocos, fiquei lá por 12 dias, mas com toda a certeza minhas mais doces e belas recordações estão nessa cidade.. ao Ler os seus post sobre este lugar lágrimas vieram ao meus olhos, e como num sonhos, muitas memórias vieram a minha mente.. há quantas saudades! quantos sentimentos vivi nesta cidade magica e com um Ar romântico! Tive o privilegio de ficar em um studio com vista para o mar.. acordar com o mar a minha frente e o som das gaivotas.. e poder aproveitar o mais lindo por do sol da minha vida! Conheci a Praia de Sid Kaouki há uns 15 minutos de carro da cidade velha.. um lugar de sonhos!
    Espero um dia regressar.. e quiçá reviver sentimentos.. e memórias..
    Há Essaouria quantas saudades deixou em meu coração…

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