Já estou há três dias no Irão e continuo sem vontade nenhuma de aqui estar. Ainda vou considerando ideias alternativas, como apanhar um comboio directamente de Teerão para Van, na Turquia, passar alguns dias numa terra que compreendo muito melhor e onde me sinto infinitamente mais confortável e depois regressar a Istambul e esperar que chegue o dia do regresso a Portugal.

A moral continua em baixo. A única coisa agradável é a generosidade dos meus anfitriões. E o clima, que se mantém impecável. Mas não sinto qualquer empatia pelas pessoas sem nome, mas ruas. É uma multidão que não compreendo, que me é desagradável. Não me imagino a cirandar e entrar em lojas e dizer simplesmente que sou estrangeiro. Não é por nada que os que não me conhecem possam pensar. Já estive em diversos países em redor do Irão e em todos eles me senti à vontade. Turquia, Síria, Georgia, Arménia, Jordânia… um mundo que me recebeu de uma forma que me fez sentir em casa. No Irão, ironicamente apesar de ninguém na rua me identificar como estrangeiro, sinto-me um extra-terrestre. Há um fosso que me faz sentir pequenino e com vontade de desaparecer daqui. Já estive em alguns locais que não me encheram as medidas, já visitei povos que na sua globalidade me pareceram bem desagradáveis, hostis. Mas nunca me senti desta forma, com um desejo de me materializar noutro lado qualquer.

Depois de acordar e de comer qualquer coisa regressamos para a cidade onde os pais do Amir estão. Apesar de ter crescido nesta casa, a família já não vive aqui em permanência. Mantêm-na como um retiro de fim-de-semana.

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As ruas estão cheias de pessoas que comemoram a ocasião festiva. Uma multidão de figuras de negro. Elas mais cobertas do que eles, mas tudo numa mesma massa sem côr. Deixamos as mochilas em casa e vamos dar uma volta. Há restos de cordeiros sacrificados para a ocasião, as peles retiradas, prontas a serem curtidas, algumas poças de sangue. As procissões prosseguem, por vezes cruzando-se, e quando isso sucede os homens dobram-se numa vénia.

Numa das vias principais há uma sessão de oração colectiva. Passamos junto a um cemitério. Pergunto se podemos entrar. No Irão os cemitérios são frugais. As lápides são horizontais, cobrem apenas a área onde o corpo penetrou na terra. Não há elementos decorativos, para além das inscrições pinturas simples nessa pedra. Ao fundo há uma zona especial onde se encontram os restos mortais dos que tombaram na longa guerra contra o Iraque (1980-1988). Mas não posso ver com atenção porque há outra sessão de oração colectiva, desta vez apenas com mulheres… viúvas de guerra…?

O Amir indica-me uma campa. Parece recente, e é. Um voluntário que combatia o ISIS e tombou em combate. Diz-me que há muitos iranianos que estão a ir para as terras da Síria para se oporem ao avanço destrutivo do ISIS… enquanto muitos dos que o deviam fazer fogem para a Europa.

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Encontramos por acaso as mulheres da família no cemitério. Vejo que se baixam e tocam com o nó dos dedos numa campa. É o tio-avô do Amir. Ou era. Morreu de velhice e agora os familiares vêm-no visitar. Tocam assim na campa como que a bater à porta, a chamar a atenção da alma que vêm visitar para a sua presença. Só isso.

Depois da breve voltinha voltamos para casa. Todos eles vão falando em farsi. Sento-me no exterior com o computador ao colo, vou escrevendo. O Amir, sempre amigo, vem-me perguntar se está tudo bem, se preciso de alguma coisa. Sim, está tudo bem. Passado um bocado chamam-me para a refeição. Que bonita é. No chão atapetado está posta uma toalha com os diversos pratos de iguarias. É-me oferecido o lugar de honra no topo da “mesa”. Fomo-nos sentando no chão e foi um momento muito agradável. A comida estava toda boa mas gostei especialmente dos alhos marinados em sumo de uva, de tal forma que se tornam um pickle onde o sabor característico se perde e comem-se como quem come azeitonas. Havia salada, e frango assado servido com arroz.

Depois o dia continuou, como as anteriores, preguiçoso. Sentei-me no sofá a conversar com o Amir, cada pessoa nas suas tarefas, nos seus diálogos. Falamos em ir embora, e quando começamos a preparar a partida o desfile comemorativo aproxima-se da casa, e vamos lá para fora ver a representação de Yazeed e todo o cortejo que passa em grande algazarra dramática.

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A viagem de regresso a Teerão é longa. Primeiro vamos deixar a amiga deles a casa. E depois sim, para a grande cidade, onde um trânsito caótico nos aguarda. Foi um fim-de-semana especial, uma boa parte dos habitantes da capital foram até às suas cidades e aldeias de origem e agora estão de volta.

O serão é passado em casa, claro. Há um ambiente diferente, uma cumplicidade forjada por três dias de convívio ininterrupto. Eles foram amigáveis desde o primeiro minuto, mas agora há um à vontade que se associa a uma amizade. Foi o último serão com eles, e como tantas vezes sucede, a memória da companhia é muito melhor do que as dos locais.

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