Do lado de lá do rio, há Dalah. É uma espécie de Cacilhas de Rangoon, mas ao contrário do que acontece em Lisboa, há um portal que não nos transporta apenas para o lado de lá do rio, leva-nos para outros tempos, para um universo diferente.

Pelo final da tarde a hora de ponta chega à antiga capital da Birmânia. O trânsito adensa-se e os peões enchem as ruas, fluindo em direcção a casa. Perto do mítico Hotel Strand há uma passagem aérea pedonal que conduz à estação de barcos.

Na entrada do terminal os locais parecem pagar as suas passagens mas os estrangeiros são gentilmente conduzidos para o gabinete onde se opera a doce sangria: com sorrisos e boa-vontade pagamos umas vinte vezes o preço normal, recebendo em troca uma garrafinha de água e uma área reservada no convés da embarcação, em que só reparo à saída, no regresso.

Feitas as contas são cerca de 3 Euros para a viagem de ida e volta. Considerando que são menos de dez minutos para cada lado, é um valor exagerado, mesmo dentro do espírito da bi-tarifação. Mas vale a pena, cada cêntimo, cada Euro e ainda mais.

A magia começa logo no terminal. A multidão aglomera-se. O ferry está prestes a chegar e assim que soltar a sua carga humana estará pronto a receber nova vaga. As pessoas rolam pela plataforma, invadem o espaço disponível. Alguns levam bicicletas e há mesmo motorizadas.

No cais onde o barco se encontra atracado há vendedeiras, sobretudo de fruta, mas também de bebidas e outros petiscos. Os seus pregões enchem de som o ar quente daquele fim de tarde. Dinheiro e mercadorias mudam de mãos.

Subo para o convés superior, sento-me numa cadeira individual de plástico, como se aquilo fosse uma esplanada. São um reforço à capacidade de lugares sentados, maioritariamente convencionais, como nos nossos cacilheiro.

As gaivotas rodeiam a embarcação e quando o apito soa e o caso se afasta,devagarinho, da plataforma de cimento, a excitação das aves crescem. Seguirão o barco durante toda a viagem, aproveitado a ajuda para uma melhor pescaria.

Em nosso redor uma miríade de embarcações menores sulcam as águas. São canoas, ou pirogas, motorizadas, que actuam como táxis aquáticos. Também elas ligam Rangoon a Dalah, mas servem apenas quem estiver disposto a pagar pelo serviço melhorado.

É dia de São Valentim. Dia dos Namorados. Imagino que seja um bom dia para o negócio, altura em que os remediados jovens birmaneses fazem um esforço para conseguir algo de diferente para o dia especial que partilham com as suas “mais que tudo”. Mas há também famílias, grupos maiores.

Atrás de mim, na popa, existe um café-mercearia. Não tem muitos clientes. A curta viagem está a chegar ao fim e sinto que o potencial para observação de pessoas não é libertado nestes poucos minutos. Terei que me conformar.

Desembarco e sou envolvido pelos taxistas. Pelos convencionais e pelos outros: moto-táxis, rickshaws. Dos verdadeiros, dos que lidam sempre, ou quase, com gentes locais e que não falam inglês e raramente veem um estrangeiro.

A zona é uma Babilónia comercial, vende-se de tudo, e tudo é envolvido numa nuvem de pó. Passam os veículos, carregados com clientes e muita carga. Ajeitam-se os negócios, acertam-se os preços.

Sem saber o que fazer, imagino um círculo que me trará de volta ao cais e volto à direita. Em menos de nada estou num espaço de sabor rural, muito rural, onde algumas das coisas que observo não serão muito diferentes das que foram descobertas pelos primeiros europeus a chegar à Birmânia.

As pessoas reagem bem, com indiferença ou com um aceno de mão. São pobres, tão pobres, mesmo ali, em frente à grande cidade, cosmopolita, coração económico do país. Sei logo que este será um dos momentos da viagem. Tão incrível e tão simples de obter.

Vou andando e chega-me aos ouvidos uma estranha batida de rock. Há uma festa algures. E logo de seguida redescubro a infinita capacidade de me surpreender: o local do concerto é nada mais nada menos do que o templo tamil!

A música vem sem dúvida do recinto. No exterior uma pequena multidão de almas tão extasiadas como eu encara o interior. Talvez estejam apenas espantados ou talvez sejam “taxistas” à espera de clientes. Estudo a situação durante uns segundos. A festa parece ser de acesso livre e apresto-me a entrar. É neste momento que se me dirige um senhor de aspecto digno – sem dúvida o organizador, provavelmente o líder da comunidade – que me pergunta se gostaria de visitar o templo. Claro!

Explica-me o protocolo necessário, em excelente inglês. Observo-o melhor. Veste um sarong encimado com uma camisa impecável. Afasta com um aceno de mão um comerciante que estava apostado em me vender flores. Conversamos um pouco… de onde venho.. futebol… se sou da terra do Sporting… mais uma vez o protocolo… sapatos à porta, não entrar no recinto do altar… posso fotografar à vontade… falo-lhe da minha experiência no Sri Lanka e logo me deixa à vontade, diplomaticamente, dando-me espaço.

Quando termino o volteio no interior do templo convida-me para o concerto. E lá está, o mais surreal de tudo, uma cantora vai dando vazão à sua arte, com banda e tudo, perante uma pequena audiência que observa com aparente estranheza. Na primeira “fila” um grupo de homens sentado no chão, em linha, parece vibrante. Há o que se levanta, o que despoleta uma reacção: um polícia do contingente de segurança – que parece ser mais numeroso do que os espectadores – levanta-se, caminha calmamente até ele, dá-lhe um calduço que tem o efeito de o fazer voltar à posição de sentado.

Fico por ali um pouco a sentir o ambiente. Como adoro Rangoon e a Birmânia. Que pena o sol já ir tão baixo. Tenho que regressar ao cais.

Volto por outros caminhos, que fervilham de vida. As gentes da terra estão de volta, depois de um dia de trabalho na grande cidade. Fazem as últimas compras antes de regressarem a casa. Têm os seus dois dedos de conversa com o vizinho. Os meninos jogam à bola na rua de pó.

Já na estrada principal, encontro um mercado, daqueles mercados que valem tudo para o viajante. Cheio de cores, de produtos diferentes, gentes exóticas. Não é grande, mas é intenso. Há vegetais e muito peixe, moluscos, coisas do mar, da água.

Já é quase de noite. Aproximo-me da estação fluvial e a agitação é agora imensa. Um verdadeiro mar de moto-táxis espera os clientes que chegam sem parar. Da estrada resta apenas um estreito fio de alcatrão, porque toda a restante área foi tomada por vendedores que ali encontram mercado para tudo.

No regresso, já a bordo, penso que acabei de mergulhar num mundo novo e que estou agora a vir à tona para respirar. Apesar do cenário ser fascinante, com o pôr-do-sol sobre as águas do rio, com as pessoas e trajes coloridos e faces marcadas pelo barro maquilhante, com as muitas pequenas embarcações que enxameiam aquelas paragens… mas nada voltará a ser o mesmo depois daquele fim-de-tarde em Dalah.

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui