Apostado em tirar o máximo de sumo dos últimos momentos em Myanmar. À tarde, comboio para Rangoon, uma longa viagem de umas 15 horas, com a maioria do percurso a ser feito de noite. Mas para já, é manhã e como Mandalay não tem muito para oferecer, vamos a Mingun.

Fica do outro lado do rio, há que ir de barco, e demora basicamente a manhã toda. Existem vários operadores a fazer a ligação, sendo que a opção mais económica é a empresa estatal, cuja embarcação arranca às 9 e regressará pelo meio-dia e meia. O bilhete custa 5.000, ou seja, 3,50 Eur, a ida e volta.

Pensei em caminhar, mas a preguiça venceu e um táxi custou basicamente o mesmo valor que o passeio fluvial. Arranjado pelo hotel.

Cheguei ali à margem do rio e fiquei logo interessado na azáfama que vi. Tantos barcos e imensas pessoas, figurinhas, como formigas, para trás e para a frente, carregando e descarregando, tirando água do leito, nadando, cozinhando, correndo, dormindo. Esta foi a parte boa. A má foi olhar em redor e ver autocarros de turistas a chegar de enxurrada, grupos de asiáticos no seu melhor estereótipo a encher barcos que logo se punham ao largo, em direcção a Mingun. E enquanto isto se repetia, uma pequena multidão para o “meu” barco ia-se juntando. Um grupo mais simpático, mas mesmo assim demasiado numeroso para o meu conforto.

Comecei a matutar em abdicar do bilhete e simplesmente não fazer nada. E estive assim, no vai-não-vai até à última da hora e fui.

Toda a gente subiu para a plataforma superior, cá em baixo ficou quase vazio e estava para lá uma cama, não sei porquê, onde me estendi e assim fiz parte da viagem, embalado pelo ronronar do gasolina e pela ondulação suave do rio. Sentei-me um pouco à proa. À nossa frente corriam outras três embarcações, com o mesmo destino, como se de uma frota de invasão se tratasse.

Não sei quanto tempo demorou a travessia, talvez uns 45 minutos ou uma hora. Aproximava-se Mingun, via-se a enorme meia cúpula de uma estupa nunca acabada, que no fundo foi o que criou a fama de Mingun. Isso e, claro, não haver nada de notável em Mandalay, que teve que olhar para mais longe para encontrar uma referência de interesse.

Na margem, os táxis. Táxis diferentes: carros de bois com um toldo e a palavra “táxi” escrita no flanco. Para levar os turistas a passear. Desembarca a horda e com eles eu. Tudo em direcção aos monumentos. Parece que há para ali templos, pagodes, eu sei lá. Ah mas o que é isto… uma espécie de “operação Stop”. Tudo a pagar mais 5.000 para ter acesso? É que nem pensar. Obrigadinho, vou ali beber uma cerveja e ao meio dia e meia lá encontrarei o caminho para o barco.

Encontrei uma esplanada agradável, encomendei a tal “bejeca” gelada. Uma garrafa de 640 ml, vendida por 1,40 Eur, e deixei-me estar. Vendo. E parecendo que não tive muito para ver naquele tempo. Escrevi, também. Mas fui observando. O monge já idoso que passa, em direcção à margem, onde se desnuda, chapinha, nada, torna a chapinhar, lava-se com a ajuda da sua taça.

Passa também o ocasional táxi de bois. Um SUV para mesmo ali, saem dois jovens e trazem um drone. Meninos ricos, meninos de bem de Mandalay, com dinheiro para os brinquedos mais extravagantes. Passa uma scooter conduzida por um homem que leva consigo uma femme fatale de verde vestida.

Aparece um prato de amendoins em cima da mesa. Cortesia da casa. Vêm entregar uma bebida num saco de plástico. Deve ser vinho de palma. O homem da mulher do café senta-se a uma mesa com dois amigos, que vão pondo a conversa em dia enquanto consomem o conteúdo do saco, entretanto devidamente passado para um jarro de vidro.

Passam atrás de mim dois cavaleiros, o que é uma visão inesperada em Myanmar. Cavalos bem tratados, todos prontos para uma festa. E depois vem um camião com um altifalante de dimensões míticas que faz um barulho à altura… a anunciar alguma coisa, não sei.

Está na hora de regressar. Sem saber bem como, a vinda a Mingun foi um sucesso. O passeio pelo rio é agradável, apesar de as vistas oferecidas já se começarem a banalizar. Regressamos a Mandalay, fitando os taxistas e candidatos a transportadores que sempre aguardam estes barcos.

O movimento louco na margem continua. É um carnaval pegado, mas a pobreza ali é a doer. Pobreza de alguns, porque passado uns metros vejo mais um dos postaizinhos surpresa de Myanmar: um pequeno terreiro vedado, uma o coisa pequena, talvez dez metros por cinco, e lá dentro uma louca festa de casamento. Fora, miséria e uns quantos embasbacados. Dentro, cor e alegria, gente bonita. Enquanto passo por ali, no que demoro não mais do que quinze segundos, há duas pessoas que convidam para entrar e fazer parte do banquete e da festa. Tentador, mas não… calor e cansaço. A noiva é linda, lá isso é.

 

Agora entro num mercado de peixe, um espectáculo por si, onde o cheiro nada tem de desagradável, por incrível que pareça, considerando o produto e o calor que é sempre intenso mas mais ainda aquela hora do dia.

Depois chegamos à avenida que subimos no primeiro dia e tornamos a fazê-lo, e de novo é como assistir a um espectáculo de circo, nunca sabendo que avistamento fantástico será feito a seguir. Será o pequeno autocarro cujo auxiliar pendurado nos convida para entrar? Ou o oceano de motorizadas que sem explicação aparente se concentra entre a estrada principal e uma rua lateral?

Passamos por ruas que são claramente de predomínio muçulmano. Duas mesquitas. Homens de barba, mulheres de hijab. E depois chegamos ao hotel.

As malas já tinham sido preparadas e estavam na recepção. Agora é comer um gelado na loja do lado, fazer um pouco de tempo, esperar pelas 15 horas. O comboio só sai às 17 horas e a estação é ali perto, no máximo a 15 minutos a pé, mas não há assim muito para fazer. Paramos num supermercado moderno que tínhamos avistado, bem bom, aliás, onde me abasteci bem para a viagem. Outros ocidentais faziam o mesmo.

Quanto ao comboio, foi simples. Chegar e entrar, compartimento cama para duas pessoas. Passeio pela plataforma. É uma composição enorme, longa de umas quinze carruagens, incluindo um vagão-restaurante. Vou até ao topo, quero mirar a locomotiva.

Estas estações na Ásia são sempre tão fotogénicas… podia perder-me aqui durante um dia inteiro, encontrar um cantinho discreto, fotografar pessoas. Sinto-me bem.

Já perto da hora de partida chegam os companheiros de viagem, um casal de uns 60 e tal anos, apaixonados como devem ter passado toda a vida, trazidos talvez por um filho. Recomendações feitas, despedidas tratadas e está mesmo na hora.

Às 17 soa o apito. Mais uma vez uma partida atempada. As crianças que vendem água desembarcam apressadamente. O pessoal do restaurante tenta arrancar-nos uma encomenda para jantar. Sempre com um riso sincero, boa disposição.

Sente-se o final do dia a chegar quando o comboio deixa Mandalay para trás. Ainda tiro uma mão cheia de fotos. As janelas vão totalmente abertas, é o ar condicionado que temos. Está uma tarde agradável, e a luz do sol vai-se alaranjando à medida que perde intensidade. A temperatura é ideal. No corredor passam vendedoras. Ninguém vai ter fome no comboio Mandalay-Rangoon.

A noite cai, lá fora a escuridão torna-se quase total. Para trás ficaram as passagens de nível apinhadas dos subúrbios de Mandalay, as tarefas de encerramento de dia dos monges nos conventos, as estações suburbanas cheias de gente.

Nesta região a agricultura não é tão intensa como a que vi entre Hsipaw e Mandalay. Há pouca.

Vou experimentar o bar. Uma cerveja e uma mesa. Os homens presentes não fazem uma festa pela minha presença mas sinto, ou penso sentir, que se sentem lisonjeados pela visita. Um polícia que parece já um pouco embriagado senta-se à minha frente e tenta iniciar uma conversa impossível. Ficamos pela comunicação do sorriso e das coisas óbvias, como os nossos nomes. Insiste em me oferecer outra cerveja, mas não me apetece mesmo. A música é atmosférica, é um momento peculiar. Mas não dura para sempre. Despeço-me com um último sorriso, devidamente correspondido, e recolho-me ao compartimento. Leio um pouco e pelas 23 horas durmo, e durmo bem.

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