Na falta de uma fotografia do momento, fica aqui uma do Cruzamundos com alguns dos convivas naquele serão

Era mais um serão em Batman. Nada relacionado com o homem-morcego. Batman, cidade curda na Turquia. Batman, terra de petróleo. Tinha regressado de Hasankeyf e preparava-me para partir para Mardin, junto à fronteira com a Síria. E como sempre o meu anfitrião, o bom Adnan, talvez para me entreter, talvez para entreter os seus amigos, talvez para ambos os efeitos, arranjou uma pequena reunião numa casa de chá.

E ali estava eu, sorvendo copinho de chá preto atrás de copinho, eventualmente fumando um cigarro ou dois, daquele fumar social que pode aparecer em momentos como este em ex-fumadores como eu. Ora o problema é que quando se está entre curdos, não é bom que eles percebam que gostamos de algo, porque se isso acontecer, esse algo vai-se materializar: naquela noite, de cada vez que um dos jovens homens sentados no círculo acendia um cigarro, estendia-me o seu maço. E em vez do tal cigarrinho social acabei com uma brutal ressaca pulmonar.

Das muitas memórias que guardo dos meus dias de Batman, há esta, abstracta, de estar sentado com os amigos e o infinito número de primos do Adnan, e de me sentir uma estrela de cinema, o astro que todos queriam conhecer e com quem todos queriam conversar. Acho que funcionava ali como um mensageiro de notícias, uma lufada de ar fresco, uma porta aberta para o mundo, uma raridade que vinha agitar as águas do debate político daquela malta.

Naquela roda era como que o entrevistado. Claro que ouvia o que tinham para me dizer, as respostas que davam às questões que também ia colocando. Mas sobretudo era eu o alvo. Um a um iam-me colocando questões. Alguns não falavam inglês. Quase nenhum era fluente. Era pedida ajuda para a tradução. O futebol, essa poderosa massa de união cultural, era o tema de abertura, à laia de aperitivo. Sporting, Benfica e Porto eram bem conhecidos, mas o Sporting era mais apreciado. Mas a Selecção Portuguesa acima de tudo, a Selecção dos Curdos… e eu nem queria acreditar no que tinha acabado de ouvir… mas a Selecção dos Curdos porquê? Porque vestimos as mesmas cores, as mesmas cores que são proibidas no Curdistão Turco.

Depois, vencidas as inibições, passava-se à política. O prato forte. Curdistão, opressão, independência, guerra. Eu perguntava e ouvia, mas ouvia sobretudo perguntas, sobre a minha consciência do problema curdo, da minha opinião e do que pensava o mundo lá para os meus lados da questão. E estávamos no meio de tudo isto quando entra no café um velho senhor, de face muito engelhada por décadas de exposição aos elementos, vestindo roupas de cor garridas em cortes tradicionais. Às costas transportava um reservatório metálico. Vendia o seu produto, o que não deixa de ser estranho. Entrar num café para vender flores ou a lotaria é uma coisa. Mas entrar num café para vender bebidas tem algo de peculiar.

Quando passou pela nossa mesa a rapaziada automática abanou a cabeça. Perguntei ao Adnan o que era aquilo. O meu amigo estacou. Como quem diz… “Eh lá, então não sabes o que é isto…!?”. Não, não sabia mesmo. Então, é Awa Suse. O que caraças é Awa Suse, perguntei. É uma bebida, refrescante, alguns dizem que é a raiz da famosa Coca-Cola. E dito isto, chama o velhote… “Tens que experimentar, vou-te oferecer um copo daquilo”.

Encomenda uma dose ao vendedor, que lá põe um dos seus copos a encher. Passa-mo. Tomo-lhe o sabor. É diferente. Um pouco desagradável, não seria uma bebida para me conquistar. Experimento outra vez. É doce e amarga. Tem um sabor intenso. Automaticamente pego no cigarro que repousa no cinzeiro e tiro uma passa. O que fui eu fazer!? O velhote começa a reclamar exaltadamente. É bem claro que desaprova a mistura do tabaco com a sua bebida, e provavelmente é mesmo contra os costumes. Os meus amigos intervêm a acalmá-lo. Explicam-lhe que sou estrangeiro e que tem de ter paciência, e vão traduzindo-me o que se vai dizendo.

As expressões do senhor vão-se alterando. Observo-o de forma discreta mas atenta. A dor causada pelo meu involuntário atentado cultural tinha dado lugar à pura irritação. Mas agora evolui para uma desconfiança. Parece dizer “Não sei… acho que me estão a tentar enganar”. Depois, já convencido, olha-me com uma curiosidade imensa. Entretanto descontraiu. Acho que para ele aquele também foi um momento especial. Se calhar nunca tinha visto um estrangeiro de perto. Mas sobretudo, a marcar o momento, ficou a frase com que se despediu, que se traduz por algo mais ou menos assim:

“Não é espantoso…? Estamos aqui os dois, ele não percebe nada do que eu digo… e eu não poderia perceber nada do que ele me disesse… que curioso… o mundo é mesmo curioso”

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