Esta é a memória de um plácido final de tarde num daqueles dias de Havana. Era Domingo. Depois de horas feitas de quilómetros e quilómetros a caminhar, houve ainda energia para uma última saída. E ali estava, junto à entrada do porto, e de repente só queria ficar. Acho que ia para o centro antigo da cidade mas já não fui.
Em redor, uma amálgama de vida muito local. Três mulheres e uma menina. Pescadores. Gaiatos que brincavam de bola e também à pesca. [tooltip text=”Jineteros” gravity=”nw”]Cubanos que fazem vida aliviando os turistas dos seus dólares, de formas legitimas e ilegitimas[/tooltip] à caça. Tudo isto embalado pelo chapinhar ritmado das pequenas vagas que beijavam a base poluida do muro de pedra que separa o passeio da água do mar que entra barra adentro.
Encostado ao paredão, um trovador negro com uma voz celestial enchia aquelas paragens com uma música que me atraiu… como os ratinhos de Hamelin seguiam o tocador de flauta, senti que também eu iria por aqueles acordes até ao final do mundo. Foi aquele o factor determinante que me fez ficar, sentar por ali, escutar e ver.
Ao meu lado uma moça e um rapaz lançavam papagaios e foi só depois de olhar duas vezes que percebi que a energia que deles irradiava era tão ou mais poderosa do que a voz do cantor. Havia uma nota de felicidade tão intensa naquele par de olhares… os papagaios evoluiam nos ares enquanto matutava cá para os meus botões que um dia, muito mais tarde, quando a vida tiver trazido quase tudo o que tinha para trazer aqueles dois adolescentes, eles se recordariam deste dia e pensariam que aqueles é que tinha sido os doces tempos das suas vidas.
Entretanto o cantante tinha arrumado a viola e veio falar conosco. Se precisávamos de um quarto numa casa particular. Azar amigo, precisávamos, até há duas horas atrás, agora já arranjámos. Uma pena. Gostaria de conhecer melhor aquele músico que prometia melodias sem fim enquanto ficássemos lá no seu lar, que tinha vivido na Alemanha, que estava de volta, vergado pela saudade. A conversa foi interrompida pela aproximação do jinetero mais rude que tive o desprazer de conhecer durante as duas semanas de Cuba, e que teve como efeito afastar o nosso amigo da guitarra, que se pôs a mexer depressa, sem uma palavra, mas como que dizendo… “não estou aqui para aturar esta gente”.
Com a mesma brevidade despachei também o jinetero grosseiro. Fomos para uma volta, conhecemos o Gregório, que terá o seu próprio artigo na rubrica Pessoas do Mundo, No regresso os papagaios ainda voavam por ali. Por detrás deles um navio de guerra russo seguida devagarinho, no encalço de um rebocador, em busca do seu poro seguro. No muro havia outras pessoas. Mas o ambiente era o mesmo. De descontração, de entrega às coisas boas da vida. De Domingo. Entretanto foi-se o Domingo. No dia seguinte partimos para uma volta pelo país. Mas surpreendentemente, quando o pensamento regressa a Cuba é este bocadinho de final de tarde que muitas vezes aparece primeiro.