9:08 do dia 2 em São Tomé. Primeiros minutos depois de uma noite de repouso precioso. Lá fora, os ruídos de uma cidade que já está acordada há horas. Há sol e um céu muito azul deixa-se perceber pelas frestas dos taipais da janela. É uma situação rara, que sinto instintivamente que tenho que aproveitar, ao mesmo tempo que receio o calor acrescido. Penso na louca maratona que se iniciou no Algarve há cerca de dois dias. 48 horas. Parecem-me uma eternidade. Tanta coisa que aconteceu…

A manhã do dia da partida começou em grande ritmo. A lista dos últimos preparativos e assuntos que tinham que ficar resolvidos era grande. Sempre a abrir, contando os minutos, até à hora do comboio para Lisboa. Apanhamos o Alfa das 15:16. Nunca escolho esta opção, ligeiramente mais rápida, porque detesto as carruagens, o balanço resultante da velocidade faz-me enjoar, o bar não tem mesas nem bancos. E assim, as horas que num intercidades seriam ocupadas a trabalhar e a ler passam-se numa espera ansiosa, para que o ligeiro mal-estar causado pelo permanente balançar termine.
Em Lisboa serão quase cinco horas na companhia de família, temperadas com um passeio pela zona da Expo. E pronto. Chegou o momento do aeroporto. No acto do check in, quando esperamos que nos atribuam os lugares a bordo, dizem-nos que não podem, que terá de ser no portão de embarque. A mochila, é-me dito, terá que se enviada como bagagem de tamanho extraordinária. Não compreendo nem uma nem outra das coisas, que são inéditas, depois de tanta viagem. Mais tarde, quando nos dizem os lugares… são um em cada ponta do avião. Esta gente está doida. Não utilizo muitas vezes o aeroporto da Portela, mas quando o faço há sempre alguma coisa a correr mal. E com um vôo quase à uma da manhã, nem há o pretexto da saturação dos terminais. Junto a nós está uma pequena família que é colocada numa situação aborrecida: parece que foi detectado um objecto numa das malas de porão que levanta dúvidas. Em situações normais, uma viatura levaria o dono da bagagem até às instalalações onde se procederia à verificação. Mas aquela hora é-lhes dito que já não há carros para esse transporte e que ou autorizam uma verificação de bagagem sem a sua presença, ou caminham até lá  (devem ser uns quantos quilómetros) ou ficarão em terra. Depois de muito finca pé lá se arranja o transporte e fica a memória de mais uma bronca à aeroporto de Lisboa.

O vôo TAP que afinal seria White Airways acabou por ser SATA. Os clientes são passados de companhia para companhia como se fossem caixotes, sob o abrigo legal que a constituição da Star Alliance lhes confere. E se eu, por alguma razão abominasse a SATA e tivesse feito uma jura de não usar os seus serviços? Compro um bilhete na TAP e sou condenado a viajar com a SATA… é como entrar num restaurante e de repente alguém decide por nós que afinal vamos comer num McDonalds… ou nos devolvem o dinheiro e passamos fome.

O vôo corre bem, sem turbulência, mas com as quase seis horas a tornarem-se lentamente numa tortura crescente, acentuada pelo sono causado por uma viagem nocturna. Os passageiros têm todos um comportamento exemplar, do princípio até ao fim. Não há crianças em birra nem gente a falar em voz alta. Partimos com quase uma hora de atraso, sem razão aparente para além da intrínseca incompetência das gentes do aeroporto. Pelas 2 da manhã, uma bela ceia, que muito me agrada, e que é coroada por um whiskey que, lentamente, me acompanha na leitura de um dos livros Harry Potter que trouxe no meu Kindle. Não consigo dormir, como esperaria. Não me é fácil adormecer na posição de sentado, e sem espaço contíguo para me alastrar livremente torna-se impossível. Resta-me esperar, recusar o pequeno-almoço, trazido quando o dia começa a nascer lá fora e, finalmente, celebrar a aterragem com um pensamento positivo.

São seis da manhã, mas o calor não quis deixar de nos cumprimentar à chegada. Quando me assomo à porta do avião sinto-o, e de imediato os poros de pele se abrem e o suor começa a escorrer. Lá em baixo uma brigada de funcionárias vestidas de igual espera a hora de subir para a limpeza do avião, todas olhando-nos, pescoços bem levantados. Assim que assento os pés na placa do aeroporto sou logo atacado à dentada por um mosquito.


As formalidades de terminal decorrem sem novidades. A espera para verificação de passaportes é algo lenta, mas podemos esperar sem problema. Ainda falta algum tempo para a hora marcada com o nosso anfitrião, chinês de Singapura, a viver em São Tomé há uns poucos anos. Assim que saimos da cabine de verificação de documentos somos “apanhados” pelo pessoal da saúde pública, que nos pede o boletim de vacinas. Afinal não é uma exigência. Gostariam de o ver mas não podem fazer nada se não o tivermos. Suspeito que é um hábito que vemn dos tempos em que era obrigatória prova de vacinação contra a febre amarela para entrada no país. Nessa altura, se o incauto viajante não a tivesse, seria logo ali inoculado, nas condições duvidosas oferecidas no terminal de aeroporto.

Assim que olho parao tapete de bagagem vejo a minha mochila a passar. Mando-me a ela com energia, pedindo desculpa às pessoas em redor pelos empurrões a qe os sujeito, e podemos sair cá para fora sem que ninguém se interesse por fiscalizar conteúdos de bagagem.

Enquanto espero pelo nosso anfitrião vejo os dois aviões deixados ao abandono nas imediações do terminal, mais tarde transformados em restaurante. São um par de Constelators utilizados pelos portugueses durante a guerra do Biafra, para transportar mantimentos para os rebeldes que nesse conflicto lutam pela secessão, contra o governo central da Nigéria, que tem todos os apoios do mundo.


O Lim chega pouco depois, no seu Suzuki Vitara doente de muitas mazelas. Apresentações consumadas, traz-nos até à sua casa, a meio caminho entre o aeroporto e a cidade. Ou seja, a 3 km de cada um. Instalamo-nos, enquanto ele sai para o trabalho, e pouco depois, com uma directa em cima, antecedida de uma caminhada de 5 km pelas ruas do Parque das Nações, inicio a jornada inaugural desta viagem de descoberta de São Tomé.

A excitação dos primeiros momentos num país novo, ainda para mais tão diferente e exótico, fizeram desaparecer as mazelas de uma noite não dormida. Caminhada até à cidade, pela estrada marginal, sempre a descer até encontrar o mar. E depois, conhecemos o José António.



Chegou-se até nós e cumprimento: “Olá, tudo bem?”. Com algumas reservas, próprias de quem acabou de chegar a um local em que tudo é desconhecido, retribuo o cumprimento, consolidado por um aperto de mão.  Que trabalhava no aeroporto, que nos tinha visto chegar. E com isto ia caminhando lado a lado, forçando uma companhia não convidada. Estava eu a matutar como me iria livrar dele quando nos cruzamos com um senhor que trazia nas mãos um saco com peixe fresco, acabado de comprar ali à frente, no pontão dos pescadores. Eles cumprimentam-se e, por arrastamento, o recém-chegado aperta-me também a mão, como é costumo em São Tomé. Conversa puxa conversa e, sendo portugueses, somos convidados logo para visitar a sua casa, ali perto, e ir conhecer a sua senhora.

Por esta altura já começo a ficar entusiasmado. Ainda agora cheguei e já estou a fazer amigos. Lá nos sentámos na sala de estar de casa do senhor Arlindo, uma vida dedicada à condução de camiões, primeiro para os portugueses, depois, para a Sonangol, lá longe, no continente. A família está toda ela dispersa: por São Tomé, por Angola, por Portugal e por outros países que não fixei. Mostra-nos o álbum de família que esfolheamos calmamente, com interesse. Sai por uns segundos da sala e regressa, cantando, entusiasmado como uma criança, trazendo num tabuleiro duas garrafas de plástico, daquelas de água, de 0,33 l, com um líquido leitoso: vinho de palma, a bebida mais popular no país. Experimento um pouco e detesto.

Saímos de casa do amigo Arlindo na companhia do José António, que continuava colado a nós como uma lapa. Entretanto, inspirado por aquela experiência tão interessante, decidi tolerar a presença dele, que se arvorava já guia não oficial, pronto para nos mostrar toda a cidade a troco do que quiséssemos dar. E dei por mim a segui-lo, gostando da sua forma de estar, sabedor das coisas, homem humilde de conhecimento adquirido pela experiência, caminhando à nossa frente na sua figurinha magra que me habituei a ver com um sorriso. Distribuindo cumprimentos à esquerda e à direita, aqui e acolá, este era o José António, filho de uma ilha onde é fácil encontrar gente conhecida, mas ele próprio um campeão de popularidade sem limites geográficos no seu pequeno país.

Escoltou-nos pelo mercado, depois de uma travessia na imundice do recinto dos táxis partilhados, única forma de transporte público em São Tomé, parqueados num terreiro enlameado, onde cães tinhosos esquadrinham o solo húmido em busca de uma migalha que os alimente por mais um dia. Senti-me satisfeito com esta escolta inesperada, que me ofereceu a oportunidade de dar os primeiros passos neste novo mundo, tão diferente de todos os que conheci, com a ajuda de uma mão amiga.

Do primeiro andar do edíficio do novo mercado tem-se uma perspectiva geral da animação lá em baixo, das vendedeiras que trabalham, preparando e apregoando os seus produtos, fazendo o negócio que conseguem. Na área adjacente há mais gente que vende um sem fim de mercadorias, e pequenas lojas, de aspecto centenário, que deveriam ser assim quando São Tomé era uma pequena comunidade pouco maior do que uma aldeia.

O José António mostrou-nos quase tudo em menos de nada. É assim mesmo São Tomé, pequena, com as pontas ao alcance de um passeio a pé, se excluirmos os subúrbios residenciais. E foi assim que me foi indicado o liceu nacional, o edíficio da rádio, a esplanada da moda, o antigo cinema, o parque popular… e foi precisamente aí que achei que já bastava. Queria que me sobrasse alguma coisa para explorar sem um cicerone. Queria reconquistar o meu espaço e, de resto, estava exausto, com tantos eventos depois de uma noite sem dormir. Exigi portanto uma paragem para uma cerveja, que aproveitaria para converter nos últimos momentos na companhia dele. Bom, as coisas foram mais ou menos assim. Em vez de uma cerveja, bebi três, nacionais. Foi o meu primeiro contacto com aquelas garrafas de vidro castanho, de meio litro, sem qualquer rótulo, cuja marca aprendoi ser Rozema (uma pequena comunidade nas imediações de Neves, onde se encontra a fábrica de cerveja). Há uns tempos existia uma outra marca local, mas acabou. Agora é só esta. Uma garrafa custa em média uns 80 cêntimos.

E ali estávamos nós, na simpática e pequena esplanada de um restaurante cujo nome nunca aprendi, a recuperar da estafa e do calor húmido. Falámos de São Tomé, aprendi imenso com o José António. Quando disse que estava na hora de prosseguir o passeio, deixei também bem claro que a partir daquele momento preferiamos estar sozinhos. Dei-lhe o equivalente a 4 Eur pela companhia e perguntei-lhe quanto acharia justo para ser o noss guia por um dia: depois de muito espremer consegui extrari-lhe um valor. 8 Eur seria satisfatório. E foi assim que fomos contactando, tantas vezes, ao longo da minha visita, até que quase no fim foi possível combinar um passeio, como em devido tempo se contará.

O resto da tarde foi passada a deambular. Rondámos o forte antigo, que é agora o museu nacional, erigido em ponto estratégico, com controle sobre a cidade e sobre as suas aproximações marítimas. Em seu redor, palmeiras, canhões enferrujados, praias urbanas e estátuas de navegadores portugueses. Um jovem são tomense está sentado a desenhar, uma bicicleta a seus pés, uma figura singela num cenário deserto.

Voltamos a passar frente ao liceu nacional, tão característico dos estabelecimentos de ensino portugueses dos anos 60. Apreciámos aquele bocadinho da cidade, uma marginal esquecida, que não faz concorrência à outra, que segue junto à baía Ana Chaves. Aqui, apenas uma vez por outra passa um carro. Há um perfume de outros tempos no ar, conferido pelos balaústres cheios de estilo, que vão desaparecendo aos poucos, vítima dos elementos, sem que ninguém invista na sua manutenção. E depois, há os edíficios, tão “coloniais”, em blocos ou em vivenda.

Mais à frente, o tal café da moda, que já nos tinha sido mostrado, acentua a personalidade desta parte da cidade. Na esplanada são quase todos brancos. E de resto o local é simples, não tem nada de especial, para além da localização, com o mar do lado de lá da estrada, e os preços, que são provavelmente os mais altos de São Tomé.

Andamos para o centro, percorrendo amplas avenidas que com o tempo se tornarão velhas conhecidas, mas que hoje nos tratam com a formalidade com que se recebe uma visita. Procuramos um local para ver o futebol. Neste dia Portugal será injustamente batido pela Rússia por 1-0, mas só depois de percorrer todo o centro da cidade antiga damos com um local onde o jogo está a ser transmitido. É o bar anexo ao hotel Avenida, que se tornará uma das nossas bases permanentes destes dias de São Tomé, basicamente por uma razão: é um dos dois ou três locais da cidade com acesso wi-fi.

O jogo acabou. Os espectadores, maioritariamente locais, abandonam o bar com ar cabisbaixo. A noite, que aqui chega pouco depois das 5, vai-se abatendo sobre São Tomé. Está na altura de iniciarmos a caminhada de volta a casa. Ainda não vamos longe e já a escuridão é completa. No Equador a noite não se faz rogada. A baía é magnífica, mesmo com o trânsito incessante. A meio caminho fazemos mais uns amiguinhos… duas crianças que vêm da escola, um casalinho de irmãos, que caminham conosco, à conversa, até tomarem um caminho divergente.

Pensávamos que o dia estava encerrado, e o balanço era manifestamente positivo. O GPS marcava 16 km palmilhados, e vimos tanto, sentimos tanto, vivemos tanto. Só que as coisas não se ficariam por aqui. Pouco depois chega o nosso anfitrião, o KB, que estava a contar conosco para jantar. Mas tinhamos estado a comer enquanto esperávamos por ele. De resto, não apetecia nada sair, mas seria de muito mau tom recusar. Fomos com ele até ao Jasmim, um restaurante mesmo no centro, que naquela noite, sem luz e sem pontos de orientação, nos pareceu estar localizado nos subúrbios. O Jasmim é um local agradável, uma série de mesas colocadas numa esplanada de dois níveis, que é afinal o jardim do “palácio da cultura”. Aqui come-se comida “normal”, portuguesa. Isto pode soar monótono, mas ao fim de vários dias soube bem ter este “farol” disponível, para desenjoar do peixe e das frutas tropicais, base de quase toda a gastronomia santomense.

Acompanhámos o KB com uma bebida, e depois saltámos para outro local, o bar do Pierre, que há-de ter um nome mas que para nós ficou assim para sempre: o bar do Pierre, esse francês, de ares arrogantes, que fez um acordo com o proprietário daquele magnífico imóivel quase devoluto – ele faria as obras necessárias para recuperar a casa de estilo colonial, e em contrapartida ficava autorizado a explorar ali um bar por um período de cinco anos sem pagar mais nada. E o resultado foi um espaço muito agradável, que me levou para uma viagem no tempo, para os anos em que os portugueses eram ali senhores e levavam vida de monarcas, com os seus inconvenientes, é certo, mas também com uma qualidade de vida notável.

Quando chegámos ao quarto sentia-se o avassalador calor tropical, de trinta e tal graus e muita humidade. Depois do ritual que se tornou diário, de aplicação de repelente para mosquitos, passou-se uma noite de sono reconfortante.  Uma noite bem passada, que antecedeu muitas outras arruinadas pelo suor e pelos barulhos constantes. Para já valeu o cansaço acumulado, que temporariamente anulou essas contrariedades.

4 COMENTÁRIOS

  1. Parabéns pelas imagens e pela historias que descreve à volta das mesmas – Muito bem documentadas. Numa linguagem solta e espontânea. As imagens são belíssimas. A natureza ali é um prodígio e proporciona sempre excelentes fotografias – E então quando o fotógrafo sabe tirar partido da sua observação, melhor ainda. Mas confesso que fiquei muito deprimido! – Já sabia que as roças e as suas instalações estavam muito degradadas, mas não imaginava que estivessem em tal estado – Trabalhei na Roças Uba Budo, Ribeira Peixe e Rio Douro, actual Roça Agostinho Neto, tão irreconhecíveis estão os edifícios! Mesmo assim, não culpo os santomenses, mas o colonialismo, que nunca se esforçou em preparar a sua autonomia e o seu futuro, senão o de se aproveitar das suas riquezas. Dir-se-á que, economicamente, São Tome está mais pobre? – Não sei. Não tenho elementos suficientes para fazer essa análise. O que eu sei há que há valores mais importantes de que o dinheiro: a liberdade e a dignidade: e era coisa que não era concedida às suas populações. É natural que, mesmo entre os santomenses, haja saudosistas, possivelmente os que faziam parte de uma pequeníssima burguesia de funcionários púbicos. Vivi lá doze anos. Tenho imensas memórias. Conto brevemente ir lá matar saudades. Já agora, um pequeno reparo: quem escalou o Pico Cão Grande não foi um japonês, mas o autor destas linhas, mais três santomenses. Obrigado pelo comentário que fez no meu site – Odisseias nos Mares – e por me ter alertado para esta sua fantástica viagem. Conto voltar aqui mais vezes. Pois, mostrou-nos, tanta coisa, que é preciso saber apreciar com mais tempo.

  2. Jorge, não fique triste porque o que conta é o sorriso e o estado de alma da esmagadora maioria dos santomeneses: um bem estar com a vida como ela é. Estes deveriam ser uma lição para o nosso povo, sempre revoltado e insatisfeito.

Responder a António Ramos Cancelar resposta

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui