O pequeno-almoço foi ainda tomado no hotelzinho simpático de Moulay Idriss: panquecas marroquinas, doce de laranja, manteiga, sumo de laranja, chá de menta, manteiga, ovos cozidos. Tudo de fabrico caseiro, a funcionar como uma óptima despedida de um local que deixa boas memórias. Apanhar o táxi para Meknès foi simples… “taxi aux Mekenès? Collective?”. Pronto. Logo somos encaminhados para o taxista de serviço, que atarefado procura recrutar no meio da praça os clientes que lhe faltam para a lotação completa. Passamos a ser três, rapidamente complementados por duas mulheres e uma jovem que chegam quase ao mesmo tempo. Dinheiro troca de mãos e em menos de nada estamos a caminho. Sem incidentes. E agora? Nada sabemos de Meknès nem trazemos a lição preparada. Resta-nos deambular durante as 3 horas que temos livres. São encontrados mercados e fontes, crianças e velhos, pedintes e religiosos, avenidas e becos. A tensão que se fareja no ar em Moulay Idriss desapareceu. As pessoas por aqui são afáveis, sorriem, ajudam, desejam boa viagem e agradável estadia no país. Meknès, como de resto todas as cidades antigas de Marrocos, são um paraíso para o fotógrafo amador. O exoticismo patente em cada metro põe a cabeça à roda. Todos os detalhes, todos os ângulos e perspectivas são apetecíveis. É nestes momentos que as vantagens da fotografia digital vêm à mente. Como sobreviver com filme quando a cada minuto há pelos menos quatro imagens essenciais a captar?
A chegada ao centro de Meknès foi o momento alto da visita. Ali mesmo ao lado, um pequeno mas animado mercado enche o olho. Ficamos durante longos minutos em contemplação, observando o vendedor de uvas e os clientes que provam e escolhem minuciosamente o produto, o homem das pipocas que as produz numa máquina à manivela, a senhora que vende roupas e parece não ter mãos a medir com a clientela. E há crianças sentadas, mendigos, polícias e gentes de todos os géneros. De repente há um pequeno alvoroço: foi a polícia, que fez uma captura; o prisioneiro de ar andrajoso e camisa rasgada é levado, sem que eu me aperceba de qual terá sido o seu pecadilho.
O polícia e o prisioneiro
Embrenhados como estamos na exploração dos cantos possíveis de Meknès não damos pelo tempo passar. Talvez tenha sido o fascínio com o mercado ou os longos minutos entretidos a dar conversa ao vendedor de tapetes que a troco de nos mostrar a sua mercadoria nos deu uma visita guiada ao pequeno palácio onde agora tem montado o negócio. Tapetes não vendeu, mas já convencido que a taluda não lhe sairia com os portugueses, tentou uma nova investida, num escalão inferior, e até me conseguiu vender uma pulseira berbere, que me agradou e que trouxe por 5 Eur em conjunto com um anel no mesmo estilo. O que é certo é que acabámos por não encontrar nenhum dos locais emblemáticos da cidade. Ficámo-nos pela Meknès comum, dos marroquinos que vivem e vão tentando sobreviver, mas também pelas ruas dos mais abastados, com sinais de distinção evidentes no exterior das casas e no trajar das pessoas que por ali fomos encontrando.
Se a experiência da véspera ao tentar arranjar um táxi na cidade tinha sido traumática, no dia seguinte revelou-se completamente diferente: tinha terminado o período de oração e nós passávamos justamente junto a uma mesquita tendo acabado de concluir que estava na hora de pôr os pés ao caminho. E nisto sai um senhor de aspecto distinto, com ar de dever religioso cumprido, e dirige-se para um “petit taxi” parado mesmo ali à porta. Cruzam-se os olhos e trocam-se curtas palavras. Que sim senhor, que está livre e é com imenso prazer que nos levará à estação. O taxímetro é escrupulosamente accionado no momento em que a viatura se põe em marcha. E em menos de nada estamos na estação, onde mais tarde passará o comboio para Fez, com vinte e cinco minutos de atraso, uma melhoria significativa relativamente ao dia anterior. Quanto à composição, nada de novo: a locomotiva, com ares de quem foi estreada ontem mesmo, puxa onze carruagens em estado de conservação um pouco mais duvidoso, apenas marginalmente abaixo do nível considerado aceitável pelos nossos padrões. Mas aquilo tudo avança cheio de pujança, às mesmas velocidades que um bom Intercidades português.
Chegados a Fez, instala-se uma certa desorientação. Um erro a tomar nota das coordenadas do local de encontro com a senhora que nos vai alugar o apartamento faz apontar o destino a cerca de 600 km. Como é evidente, não pode ser. Resta caminhar em direcção ao centro da cidade, e uma vez chegados à “medina”, ir perguntando aos inúmeros homens que nos tentam vender acomodação pelo “café Clock”. Felizmente, como já esperava, toda a gente o conhece, e não têm problemas de nos apontar a direcção certa, mesmo depois de levarem um “não”. É um dos poucos pontos de encontro dos residentes estrangeiros na cidade, e isso reflecte-se nos preços, a um nível de Lisboa ou Praga, mas também na facilidade de comunicação em inglês. O edíficio do café foi outrora um “riad”, uma casa opolenta com um pátio interior e três pisos rematados num amplo terraço. Toda essa área foi aproveitada, renovada, embelezada. Hoje é um espaço cheio de detalhes e bom gosto, que desenvolve uma actividade cultural plena e… olhem… é verdade que tendo a desprezar estes locais “para estrangeiros”, mas depois de dois dias rodeado de pessoas culturalmente tão afastadas, confesso que me soube muito bem estar ali aquele bocado, a almoçar e aproveitando a boa ligação Internet sem fios do estabelecimento, enquanto esperava pela Maia. Rapidamente me esqueci do bombardeamento dos angariadores de clientes e do caos que pode desesperar os iniciados na complexidade urbana de Fez antiga. As ruas pejadas de comércio parecem não ter fim, e contudo não merecem sequer o nome de “mercado”, apesar de em boa verdade o serem. De tudo se vende, por gente de todos os feitios. É um mundo fascinante que mereceria semanas, meses… anos… de observação atenta.
Vista do nosso terraço: a medina de Fez
A Maia é uma moça inglesa, de trinta e muito poucos anos, que comprou um edifício na zona mais antiga e central da “medina”, que, já agora, assim se chama por se tratar da parte velha da cidade. Este tipo de casa, chamada “Masrya”, é de menores dimensões que o “Riad” e era erigida como complemento a essas habitações familiares de maiores dimensões, geralmente para hospedar visitantes masculinos que pretendessem visitar os residentes da casa principal. Não se sabe ao certo quando o prédio foi construído, mas tudo o que existe nesta parte de Fez tem pelo menos 300 anos. O apartamento é agradável, com traça muito local, decoração a condizer e as condições mínimas para garantir alguns dias bem passados. Para além do nosso espaço, existe mais uma habitação no andar de cima, e depois é o terraço, partilhado entre o inquilino permanente e os visitantes casuais. Dali vê-se meia Fez e é sem dúvida o espaço por excelência para relaxar depois de uma jornada cansativa de palmilhanço urbano. Feitas as despedidas com a Maia, fiquei por lá a ler os excitantes guias da cidade que ela nos disponibilizou. Assim, caiu o dia, chegou a noite. Simplesmente não apeteceu sair para o labirinto fervilhante. Para hoje ao serão, ler, escrever, descansar.