Acordar pela última vez na Argélia. O arquitecto já não está em casa. Sossego. O barulho da rua mal chega aqui acima. Está um dia lindo, adequado para uma despedida. Apreciamos a calmaria, fazemos um pouco de preguiça. O Ferry, o amigo alemão que conhecemos em Constantine, chegará de comboio a Argel ainda de manhã e o “nosso” apartamento fica em frente à estação de comboios, por isso nada mais natural do que nos encontrarmos.

Aguardo que me envie uma mensagem. Irá chegar por volta das 10:15 e quando o comboio se detém saio para a rua para o receber. Deixará a bagagem no nosso quarto em Argel enquanto exploramos a cidade juntos. Já me sinto um veterano, posso mostrar a bonita Argel e passar os conhecimentos que o Abdou me transmitiu.

Vamos por aí a pé. A baixa da cidade e o Kasbah baixo, mas o labirinto deixo para o Ferry percorrer no dia seguinte, quando estiver a caminho de Andorra. Adoro estas ruas da cidade e não me canso de as percorrer. Vamos revendo os locais que já conhecíamos. Mostro ao Ferry onde trocar dinheiro com uma boa taxa de câmbio, passamos pelo edifício do Grand Poste, pela Place Emir Abdelkader que já tem perfume a lar para mim, e depois em frente à rua do Abdou.

Chegamos ao baixo kasbah e à Place des Martys, onde mostro ao Ferry os vestígios romanos e a estação de metro. Dali seguimos por território virgem, por um bairro que o Abdou nos tinha mostrado ao longe e recomendado para uma outra ocasião. Definiu-o como um bairro proletário francês, ou seja, a zona que na época colonial era ocupado pelos sectores mais baixos dos favorecidos franceses.

E acreditem que ainda hoje se percebe essa diferença! Há uma alteração no ambiente e na arquitectura em relação ao sector mais nobre da cidade. É muito interessante e sinto-me feliz por ter a oportunidade de vir aqui espreitar antes de deixar a Argélia. Cheio de vida, detalhes do quotidiano, um charme decadente que certamente não servirá de muito aos habitantes mas que para mim é delicioso.

Há lojas tradicionais. E um liceu com muita juventude e uns murais em mosaico que já foram muito bonitos e hoje estão um pouco obscurecidos. Continuamos a caminhar até darmos com a praia de R’Mila e uma vista deslumbrante. No topo das colinas, ao longe, vejo o destino que procuramos alcançar, a Catedral de Nossa Senhora de África, conhecida popularmente por aqui como “Madame Afrique”.

E agora,  como subir… no Google Maps tudo parece simples, mas no terreno as coisas podem ser complicadas, especialmente por causa da morfologia do terreno. Liderando, de GPS na mão, escolho uma rua, mas logo percebo que não será viável: passado um bocado segue uma direcção claramente oposta. Voltamos para trás. E que tal apanhar um transporte para cima? Suspeito que foi deste local que o Abdou disse que partiam umas carrinhas lá para cima. Perguntamos. As pessoas indicam-nos uma paragem mais à frente. Chegamos lá, perguntamos de novo e dizem para entrarmos já na carrinha que ali está prestes a arrancar.

Que sorte. Uma subida confortável – até porque o calor começava a apertar – a preço baixo e direitinha até à catedral. Como bónus esta carícia no dia a dia das gentes, este partilhar de espaço com os argelinos que por ali vivem e que vão para casa.

A viatura sobe pelas ruas íngremes. Vai deixando passageiros. Sigo sentado bem no meio e é minha função passar o dinheiro dos passageiros de trás para o cobrador, à frente. E eventualmente devolver trocos. A subida não é demorada e logo percebemos que a nossa paragem chegou. Se não soubéssemos, logo os nossos companheiros de viagem nos fizeram sinal que era ali que queríamos ir.

A catedral está mesmo ali à nossa frente e é linda! Não só o templo, mas toda a envolvência. O amplo espaço fronteiro, de onde se tem uma vista linda, as pessoas que ali usufruem de toda aquela quietude, o céu que hoje está azul profundo. Momento grande!

Andamos por ali às voltas, fascinados, e entramos na igreja que ainda está aberta (fecharia para almoço cinco minutos depois). O interior é um pouco decepcionante. Não há elementos decorativos à altura do imponente exterior do edifício. Algumas pessoas ouvem explicações dadas por um guia. Não se pode tirar fotografias, o sinal está por todo o lado… mas eles tiram.

Cá fora o Ferry faz amizade com umas jovens vestidas de forma conservadora que falam inglês. Mais uns longos minutos de deleite antes de considerar a partida de um lugar tão bonito. Aconselho muito, caso venha a Argel. Não é dos locais mais acessíveis mas vale a pena. Se for caso disso, que se apanhe um táxi.

Entretanto coloca-se outra questão: como chegar ao cemitério, que no mapa parecia contígua à catedral, mas que agora vejo lá em baixo, bem distante, ao nível do mar? As amigas novas do Ferry não sabem. Ah! Mas sabe o polícia mal encarado mas muito simpático. Pode-se ir de carrinha, para baixo, como se veio, ou então usando um trilho que passa ao lado do recinto da catedral e vai descendo a colina.

E é isso que se faz. Está calor mas a descer todos os santos ajudam, como se dizia antigamente. Passamos por alguns locais que andam nas suas vidas e ficam um pouco espantados com os estrangeiros que por ali se aventuram. O trilho acaba por terminar numa rua. A orientação é relativamente fácil: é sempre a descer. Só num ponto é que as coisas se complicam, mas uma consulta a um grupo de jovens que ali está esclarece o rumo a tomar.

Atingimos a via principal que corre paralela ao mar. Vimos uma carrinha Volkswagen, a chamada “pão-de-forma”, pintada de forma criativa. Passamos frente ao estádio e segundo as indicações o cemitério já não deve estar longe.

Parece estar fechado. Ah mas afinal está aberto. Um argelino pergunta-nos ao que vamos. Só dar uma vista de olhos. OK, procuramos algum túmulo em particular? Não, vamos só visitar o cemitério de forma geral. OK, se precisarmos aquele tipo ali – e aponta-nos outro que nos diz adeus de uma certa distância – é o guia oficial do cemitério. Talvez seja. Bem, mas vamos entrando.

Honestamente não é o cemitério mais espectacular que já vi. Falta-lhe aquele toque de túmulos-arte que se encontram noutros locais. Mas havia alguns detalhes interessantes e algumas campas notáveis, como o da família real de Madagáscar.

Demos umas voltas por ali, e mais tempo ficaria se não começasse a ficar apertado para ainda irmos comer… claro, ao “sírio”, e ver mais qualquer coisinha.

Caminhámos de volta à Place des Martyrs, e o retorno foi quase tão agradável como a ida. Havia mais trânsito, alguma poluição. Parámos para comprar umas bananas para aguentar o estômago. E chegámos ao metro. Felizmente que existe uma estação mesmo em frente ao L’Arabesque. Mais uma viagem agradável no metro de Argel e num instante estamos a comer aquelas iguarias do Médio Oriente.

Agora o Ferry vai buscar a bagagem ao apartamento e despedimo-nos. A tarde vai avançada, em menos de nada estará na hora de iniciar a viagem até ao aeroporto. Mas o dia ainda dará para mais qualquer coisa. Não para tudo o que queríamos, mas para algo.

Havia que escolher a a primeira opção foi passar algum tempo numa esplanada frente ao Grande Poste. Poderá parecer uma perda de tempo precioso mas era mesmo o que apetecia: relaxar um pouco e praticar a complicada arte de observar pessoas. E tanto para observar que ali havia! Contudo, primeiro, era necessário encontrar uma mesa livre, que não havia. Esperamos um pouco, umas pessoas levantam-se e… um argelino dirige-se para lá ao mesmo tempo que nós.

Gentil, percebe a situação e cede-nos a mesa. Fica à espera. Está agitado. Olha para o telemóvel. Decididamente aguarda a chegada de alguém. Vai ao interior do estabelecimento, e nesse momento outra mesa vaga. Quando regressa ainda está livre, faço-lhe sinal, ele aproveita.

Pede uma bebida, um café com leite, creio. Mantém-se agitado. Levanta-se, afasta-se, deixando a bebida intocada na mesa. Um grupo de homens chega, vê a mesa assim, senta-se. Conversam, bebem os seus chás, estão ali um bom bocado. Levantam-se, vão-se embora. Como por milagre o galão do outro mantém-se no mesmo lugar. E nisto o nosso amigo regressa acompanhado por um senhor mais velho, talvez o pai, e senta-se na “sua” mesa. Como se nada tivesse acontecido entretanto, como se o tempo tivesse ficado congelado, só para si, para a “sua” mesa, para o seu galão.

 

Vamos dar um último passeio. É mesmo o fim da tarde. O céu ganha as cores de pôr-de-sol. Seguimos até à Place des Martyrs, passamos junto às mesquitas, chegamos à beira do mar, da base naval, do porto de pesca. E pelo grande Boulevard. Vimos os pobres que aguardam a refeição gratuita. Mais à frente um grupo de três homens mete conversa e pede uma fotografia.

Chegamos a casa. O inglês está lá. É tempo de pegar nas mochilas, dizer-lhe adeus e partir. Vou usar aquela espécie de Uber argelina pela primeira vez. As opções seriam o autocarro ou um táxi normal. Mas corre tudo bem. Passado pouco tempo um rapaz muito jovem chega com um carro já um pouco velho e leva-nos para o aeroporto. Uma viagem serena.

Preparar para passar a noite no terminal. Há uma cafetaria com mesas e sofás confortáveis que está fechada mas onde dá para ficar. E nisto uma surpresa: descubro que o Patrick Marques, um velho contacto meu de Facebook, grande viajante e especialista na Argélia, está na cidade. E num instante combinamos e vem-nos visitar! Ficamos umas horas à conversa, mas chega a um ponto em que tenho mesmo que dormir. Até porque o dia seguinte será longo. Uns 200 km a conduzir de Barcelona a Andorra.

 

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