A noite tinha sido de plena farra. Estava a ficar num apartamento com um jovem local e com um belga, e como a vida social deles era intensa, também a minha assim se tornou. Todos os serões eram festas que terminavam quando o vodka a rodos fazia os seus efeitos. A porta daquela casa nunca estava fechada. E então era como um café local, ia-se enchendo à medida que chegavam amigos. No dia em que sugeri cozinhar um jantar português, disse que a refeição podia ser servida até seis ou sete pessoas, e acabaram por estar sentados à mesa pelo menos quinze convivas! Como sempre, adormeci embalado numa enorme e espessa nuvem de vapores de Baco, e o momento seguinte que a consciência alcança é já no dia seguinte.

Algures num recanto da mente o barulho começou a vibrar. Cada vez mais intensamente, arrancando-me daquele sono pesado de quem sabe que não são horas de acordar, que resiste à violência do despertar… alguma coisa não está bem, alguma coisa está diferente… deixem-me dormir! Mas… não é possível… o que se passa… aquele ruído, vibrante, implacável. Entro no estado consciente, sem abrir os olhos… não, não é um sonho… está mesmo a acontecer… o barulho, que bizarro. As pestanas erguem-se. Não vejo nada de especial, mas confirmo que a barulheira é real. Parece vir da rua. Levanto-me, esgueiro-me para a varanda, piscando os olhos, confrontado com a claridade súbita.

O ruido afinal é música, estridente, feita de instrumentos que me são estranhos. Vem claramente do bloco do lado de lá da rua. Deixo-me estar um pouco, a tentar compreender, a ver se tiro um sentido daquela cacofonia de sons. E ao meu lado, a rapaziada que dormiu na mesma sala começa a juntar-se, também eles atraídos pelo fenómeno.

Estamos neste impasse quando vejo o primeiro a sair. Depois outro, e outro, e mais outro. São homens, que passam pela porta da rua do prédio fronteiro, e parecem não acabar. Vêm mulheres e velhotes, crianças e adolescentes, e mais homens. São, literalmente, dezenas, e continuam a abandonar o edíficio enquanto a música soa mais alto. Interrogo-me sobre aquele milagre, porque não pareceria possível com integral respeito pelas leis da física que aquela gente estivesse toda num apartamento, nem mesmo na escadaria do prédio. E o tom continua a crescer, e então saem para a rua, um após outro, quatro ou cinco músicos, com a algazarra a atingir o nível máximo. E então surgem eles, os noivos.

Ao meu lado, os jovens búlgaros exclamam, decepcionados… “- Ah, é um casamento”. E debandam, com um encolher de ombros. Fico sozinho na varanda com o meu anfitrião que me explica que segundo a tradição, muito cedo na manhã, a família do noivo deve ir bater à porta de casa da noiva e simular um rapto; é um simbolismo para a transferência do poder sobre a jovem mulher, do círculo paterno para o do homem que será, espera-se, o da sua vida.

Entretanto, na rua, forma-se uma roda de dança, que vai crescendo, à medida que mais e mais pessoas se juntam ao círculo, com os músicos, excitados, a tirar o máximo dos seus instrumentos. Deixo-me estar por ali, sem saber como registar o momento, correndo entre a câmara e o telefone com que faço uma pequena filmagem, mas não me esquecendo de, simplesmente, viver o momento. É destes que se tira o melhor da viagem. Espontâneos, genuínos, reais.

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