Depois da viagem pelo sul da ilha, reservámos o último dia com carro para fazer o percurso do norte. A saída da cidade foi pacífica, direitos a Conde, e dali pela estrada muito a direito até Micoló. O dia estava a saber bem. As vistas eram pictorescas, instântaneos de um quotidiano tão diferente, enquadrados por um céu meio azul e uma temperatura adequada a estas andanças. Micoló apareceu e surpreendeu. As crianças nesta aldeia piscatória não se comportaram como as que nos abordaram noutros locais. Mais do que pedirem (porque pediram) quiseram passar um bocadinho diferente, acompanhando os “brancos”. E assim fomos escoltados por um pequeno grupo de pequenos amigos (e seu cão, chamado “preto” – o que causou um sorriso perante a exclamação – “olha o preto na fotografia”), que nos falaram um pouco dos seus dias, enquanto caminhávamos pela praia, de boca aberta perante os enormes barcos pesqueiros com matrícula do Gabão que ali foram intencionalmente encalhados e abandonados. Debaixo de um toldo um grupo de mulheres estava sentado e mesmo defronte um enorme peixe espada, acabado de pescar.


De Micoló tomámos o caminho costeiro até Morro Peixe. A primeira paragem foi em Fernão Dias, cenário do chamado “massacre de Batepá”, que teve lugar, se a memória não me falha, em 1953. O que ao certo ali se passou não consegui apurar. Os textos de autores são tomenses que li falam de uma investida do poder colonial contra as elites locais, da constituição de um campo de concentração naquela roça junto ao mar, de assassinatos em massa, de torturas de todo o género, de execuções sumárias, de um sentimento de paranóia que subitamente se instalou junto da população branca. Do nosso lado não encontrei nada, nem que sim nem que não, nem porquê nem o quê. Ficou o local visitado, e lá que há “fantasmas” por ali, há. As pinturas que decoram as paredes de um dos edíficios em ruinas da antiga roça são arrepiantes.

Seguimos junto ao mar, passámos por uma manada de gado composta por cabras e vacas, parámos um pouco na praia do Governador e na praia dos Tamarindos, ambas com uma beleza estranha, marcada pela pacatez da zona. Não se via vivalma, e comecei a pensar nos portugueses que noutros tempos ali iriam, já comigo nascido, na passagem dos anos 60 para os 70. Imaginei jovens oficiais milicianos namorando filhas de fazendeiros ou comerciantes da cidade, explorando esta costa que seria ainda mais exótica para eles do que para mim. Emoções positivas que ali terão sido sentidas, momentos de felicidade, daqueles que nao voltam nunca mas são mantidos para toda a vida num canto precioso da memória. Quantos sorrisos, mesmo hoje, não despertarão em Portugal uma menção a estas praias…?


Em Morro Peixe afastámo-nos da costa, seguimos até Guadalupe, onde parámos para uma bebida fresca, a conselho de um simpático polícia gorducho, claramente feliz por ver portugueses na sua pequena cidade. Caminhámos um pouco por ali, sorrindo perante o comércio incipiente instalado nas pequenas barracas de madeira à beira da estrada, onde até salões de beleza com o incontornável secador industrial de cabelo a conferir uma nota de estranheza ao cenário.

Tomámos o caminho para sudoeste, a direcção oposta à cidade de São Tomé, com uma paragem na praia das Conchas e, logo depois e bastante mais marcante, na chamada Lagoa Azul. Ali demorámo-nos, observando à vez uma série de elementos fascinantes: primeiro as árvores bizarras agrupadas junto ao local onde deixámos o carro, onde o caminho se tornava um pouco mais agressivo; depois, a praia de seixos, banhada por um mar bravo, que se estendia a perder de vista, para sudoeste; e a lagoa azul propriamente dita, que é afinal uma baia de águas cristalinas, formando uma praia sem areia onde encontrámos uma fiada de pirogas de pesca artesanais, aparentemente abandonada; depois, andar um pouco pelas rochas, como que para ver de perto aquela água tão transparente, agora tão perto de nós; por fim, foi subir o caminho de terra enlameado que trepa morro acima até ao pequeno farol ali instalado recentemente pela Marinha Portuguesa. De lá de cima a vista é fabulosa. De um lado, a praia Lagoa Azul, e do outro a tal linha de costa, numa baía mais longa, até Ribeira Funda. Observámos uma piroga, com uma solitária figura que enfrentava o mar alteroso, e as diversas embarcações um pouco mais modernas, a motor, que passaram ali junto da costa. Mas estava na hora de prosseguir viagem.

Passámos Neves, onde inquiri junto dos locais pelo José António. Alguém nos disse que a pessoa que procurávamos vivia na roça de Ponta Figo, mais para diante. Mas não me detive mais. Chegados ao desvio de Monte Forte, porque o local estava marcado no mapa como visita recomendada, fizemos o pequeno desvio. Mas não impressionou. Quase uma perda de tempo.


Passando junto a um caminho que abandonando a estrada saia em direcção ao mar senti curiosidade de espreitar o que ali se escondia, e foi assim que encontrei um local que já tinha referenciado mas que ia passando despercebido: o ponto onde, alegadamente, os portugueses terão inicialmente desembarcado, lá para o século XV. Anambó, que segundo consta era um ponto de encontro costumeiro para os portugueses dos tempos coloniais que, sobretudo aos fins-de-semana, ali se reuniam para convívio social e grandes picnics, sendo dessa altura o edíficio degradado que ainda hoje se encontra identificado como “petisqueira”. Uma réplica de um padrão português marca o local.

Mais à frente saímos de novo da estrada, desta vez para dar uma vista de olhos pela roça Diogo Vaz, bastante mais pictoresca, onde a criançada nos assediou persistentemente, de uma forma algo perturbadora, com uma certa raiva contida que senti numa ou noutra atitude. Os adultos iam sorrindo, embaraçados, como tantas vezes sucedeu noutros locais, tentando colocar alguma ordem nos mais pequenos.

De Diogo Vaz para a frente a estrada torna-se verdadeiramente espectacular. Aqui e ali já se revelava cénica mas é a partir dali que desce até ao mar e ao seu lado prossegue durante uma série de quilómetros. Foi ali e então que quis que o tempo parasse para sempre. Se há um paraíso, deverá parecer-se com aquele pedaço de costa, marcado pelas palmeiras constantes, inclinadas para o mar, e o mar que bate nos seixos, sem parar, criando aquele rumor eterno. De novo me vieram à mente imagens de portugueses de outros tempos, que terão sentido o mesmo fascínio olhando para estes mesmos elementos que agora me eram dados a apreciar.

Passámos pelo espantoso túnel cujas fotos tinha visto há umas semanas mas do qual já me tinha esquecido. Nalguns pontos a estrada resvalou parcialmente, engolida pelo mar presistente que a fustiga sem parar. Noutros, imponentes cascatas fazem cair a água que viaja desde os pontos mais altos da ilha, obcecada pela ideia de se juntar ao oceano, nalguns casos precipitando-se de alturas de dezenas de metros, mesmo ali ao lado da estrada, literalmente ao alcance da mão.

Nalguns locais, quase que escondidas sob as árvores, existem pirogas de pesca, alinhadas sobre os seixos, a distância segura das ondas que com facilidade as poderiam reclamar definitivamente para aquele mar que diariamente desafiam. Este final de tarde será dos momentos desta viagem que ficarão para sempre cravados na memória… o cenário, a luz, os cheiros, os sons.

Santa Catarina é a última grande povoação que se alcança pela estrada. É uma área imensamente pictoresca, mas cujas pessoas nos olham de forma bizarra, criando-nos um desconforto notável. Adoraria ter parado ali para umas fotografias, mas senti-me intimidado. Seguimos.

Depois de passar o Rio Lembá a estrada tem uma alteração de personalidade. Até ali é uma via perfeitamente normal, a EN1 da ilha. Mas depois torna-se um caminho rural, onde se circula ainda com algum conforto. Rolam-se mais alguns quilómetros e o cenário muda, não sei se gradualmente ou se subitamente. A selva abraça a estrada até que se chega ao fim. Não há mais por onde conduzir. Era aquele ponto o objectivo do dia e foi alcançado, por uma unha negra. A noite fazia-se anunciar e aquele não era o local mais confortável para a receber. Ficámos por ali uns minutos, simplesmente a sentir o ambiente, a ouvir a intensa música da selva.

Entretanto o José António tinha-me ligado, enquanto atravessava Santa Catarina. Convidou-me a visitá-lo, em Generosa, uma dependência da roça de Ponta Figo. Fiquei dividido. Seria provavelmente uma experiência interessante, mas fazia-se tarde. Quase expontaneamente, quando me aproximava de Neves, perguntei a um homem que caminhava junto à estrada pelo caminho para Ponta Figo. Era para trás, disse ele, e mais, que era para lá que ele ia e se lhe desse boleia certamente não me perderia. Como o indíviduo me inspirou confiança imediata, disse-lhe para entrar e seguimos. Disse-lhe quem procurava. Não conhecia. Mas ficou de ligar para o número do amigo do José António, de onde ele me tinha contactado, quando estivéssemos a chegar a Ponta Figo. E assim foi. Depois de conduzir alguns minutos numa estrada ingreme chegámos à roça, o telefonema foi feito e… era mais para cima… seguimos… e finalmente a Generosa.

Já o José António nos esperava, satisfeito pela visita. E afinal conheciam-se, claro que sim, como não poderia deixar de ser. O problema é que o nosso amigo era mais conhecido pela sua alcunha, adquirida nos tempos de tropa: “o boina”. Levou-nos a conhecer a sua mãe, depois, o seu pai, que jantava na companhia de mais família. Apresentações feitas, foi a vez de nos levar até sua casa, onde cumprimentámos a esposa. Na modesta habitação uma chama alumiava, espalhando um cheiro a querosene que me remeteu para outros tempos e outras paragens… anos 60 em Portugal. Comecei a sentir-me algo desconfortável ali, queria sair lá para fora, respirar ar fresco. E ao fim de duas tentativas lá convenci o meu amigo a mudarmo-nos para o “café” local, aquelas tascas feitas lojinhas que existem por estas comunidades. Lá estava o Silvino, o dono do botequim, vizinho e amigo do “boinas”, cujo telefone ele usava para me contactar. E o outro confrade, que nos tinha indicado o caminho. E mais pessoal local, como dois dos irmãos do José António. Paguei com gosto uma cerveja a este pequeno grupo e fiquei por ali, a gozar aquele momento único, aquela experiência especial, perdido no fim de um dos países mais remotos de África.

Infelizmente tinhamos que nos despedir. Já há muito que a noite tinha caido e era ainda preciso fazer a viagem para a capital. Demos de novo boleia ao mesmo amigo que nos tinha ajudado, e que, para grande surpresa, nos disse ter 39 anos… parecia ter uns 20 e muitos… não beber alcóol e fazer desporto era a chave do seu segredo.

Parámos em Neves para comprar banana frita de uma vendedeira de rua que calhava ser surda-muda, e depois, foi sempre a andar, sem contratempos, até São Tomé, onde acabámos por jantar no ex-Café e Companhia, actual Xico. Pedi uma omolete mista, que estava deliciosa, mas quantidade ficou aquém do desejado… não me arrependi contudo. Soube-me bem e depois de acabar o gelado quente e frio que pedi para sobremesa já estava aconhegado. Paguei cerca de 6 Euros. Este foi sem dúvida um dos dias mais preenchidos e bem passados desta viagem a São Tomé.

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