Dia 19 de Fevereiro de 2020, Terça-feira

Noite passada na espelunca de hotel de Uyuni, muito tempo para despertar tranquilamente. Há uma espécie de pequeno-almoço incluído na estadia, tão mau que prefiro pagar e ir comer noutro sitio qualquer. Volto ao mesmo local onde jantei, num exercício de masoquismo justificado apenas pela minha inércia natural. Como outro porridge e volto a pagar uma pequena fortuna enquanto como incomodado pela pequena criatura que enche o restaurante vazio com barulho.

Volto ao hostel, converso um bocado com o meu amigo basco, um momento que se vai tornando raro, isto é, encontrar viajantes interessantes em hostéis. Despedimo-nos, pego na mochila e ando até ao escritório da Andes Salt Expeditions, de onde se dará a partida para a aventura do salar.

Espero ali pela hora da partida. Chega um veículo todo-o-terreno. É o meu. Conheço os companheiros de viagem: uma moça colombiana, de Bogotá; um casal de neo-zelandeses, viajantes típicos, se é que isto se pode dizer assim; um casal de colombianos, de Medellin. Acho que tive sorte com este pessoal. Não ficou nenhuma amizade destes três dias, mas correu tudo bem, pessoal sem complicações.

E o condutor e guia, o Paco, homem de 60 e tal anos, mais reservado de início, abrindo-se com o tempo à medida que se estabelecem laços de confiança.

E ao Paco agradeço a boa ideia de me ter atribuído o melhor lugar da viatura, à frente, ao seu lado, um privilégio de grande valor para a viagem: espaço, autonomia, conforto. Maravilha!

Bem, começamos. O carro roda, mas antes de irmos a algum lado há uma mão cheia de paragens. Ali, para pagar a taxa de entrada no parque natural do salar de Uyuni. Acolá, para verificar a pressão de ar nos pneus. Mais adiante, para recolher a comida para hoje. E por fim, uma outra paragem de que só o Paco conhecerá a razão.

Todas estas tarefas concluídas, vamos então iniciar com uma visita, logo ali à frente, ao cemitério de comboios que tinha visto na véspera. Em boa hora fiz aquela caminhada para usufruir do local nas melhores condições. Nesta manhã havia literalmente centenas de viaturas e tudo aquilo se encontrava coberto com uma multidão de turistas.

Nem me afastei do carro. Os meus companheiros tiveram 15 minutos para fotografar e espreitar aquilo. Eu esperei. Agora a paragem seguinte seria uma oficina de processamento de sal, às portas do salar. Mais uma seca. Um local super turístico, cheio de gente, a rebentar pelas costuras. No exterior, uma feira de recordações para turistas. Mais uma vez, simplesmente esperei junto ao carro. Estava a ver aquilo a correr mal. Seria sempre assim? Não foi!

A partir daquele momento, tudo melhorou. Logo à frente entramos no salar. Há muita água naquela área e o Paco faz um esforço para rolar, sob o risco de termos a viatura transformada em barco.

De todos os lados acorrem outros veículos idênticos. É hora de partida para as tours e há una infinidade de viaturas. E ali está, o primeiro contacto com o fabuloso espelho de água sem fim do salar de Uyuni.

Paramos uns minutos, o pessoal todo excitado e o Paco, paciente, que já viu aquilo milhares de vezes, repetindo calmamente que é só para um par de fotos que mais para a frente teríamos muito melhor. Ele sabia, ele sabia…

Seria um dia longo, sempre com esta paisagem que nos envolve. Este mundo etéreo, onde o céu e a terra se fundem, por vezes em pontos indefiníveis.

Muita coisa pode arruinar ou danificar a experiência da visita ao salar. Nenhuma delas esteve presente quando por ali passei. Tudo foi de uma perfeição total. O céu, com muito azul temperado com nuvens altas. Simplesmente ideal. O nível de água, uma simples folha em boa parte do percurso, potenciando o efeito de espelho de água. A eficiência e simpatia do Paco e o bom ambiente entre companheiros de viatura. Simplesmente inesquecível. Tal como dizem muitos viajantes: senão o mais fascinante local da Terra jamais visto, certamente um dos de topo!

Tal como o Paco prometeu, mais para a frente pararíamos. Várias vezes e sempre em melhor posição, por vezes sem ninguém à vista, noutras alturas com um simples pontinho negro à distância, outro carro que cruzava o salar.

No horizonte vêem-se montanhas, também elas reflectidas pela fina camada de água que cobre uma boa parte do salar.

Chegamos ao monumento erigido para comemorar a passagem por aqui do Paris – Dakar, naquela época bizarra em que a prova se disputava na América do Sul. Há ali um dos hotéis de sal e uma sala de refeições onde Paco nos colocará a mesa. Uma agradável surpresa. Sabendo que a alimentação para estes dois dias e meio estava incluída no preço, esperava umas rações minimalistas, mas afinal quase todas foram autênticos manjares. Mais uma vez, um aplauso para a Andes Salt Expeditions!

Comemos ali então, apanhei um susto pensando ter perdido a carteira, que reencontrei muito bem escondida num recanto da mochila. Tentei ir ao WC o que em Uyuni é um desafio. É estritamente proibido qualquer coisa que seja no ambiente exterior e os guias, sabendo que arriscam pesada penas, certificam-se de que não se foge à regra. Restam os balneários de alguns pontos de paragem que são cobrados a preço de ouro e muitas vezes, como era o caso aqui, estão sujos acima da capacidade de um estômago rijo. Só à segunda tentativa consegui fazer o tal xixi.

No exterior existe um outro elemento de interesse, um conjunto de bandeiras colocados pelos viajantes. Há muitas, é um local cheio de cor, especialmente num dia assim, com uma luz fabulosa, e uma aragem que fazia os estandartes dançarem.

Seguimos viagem. À medida que o tempo passa e que continuamos a rolar, há cada vez menos sinais de vida humana. Muitas das viaturas presentes na paisagem um pouco antes estavam ali para tours de um só dia e já regressam à vila.

Fazemos uma paragem para tirar umas fotografias ensaiadas, usando uns brinquedos que o Paco levava. Ficam umas imagens giras. Não tirei nenhuma, deixei para o resto do pessoal mais dado a este tipo de fotografia. No fim, o Paco surpreendeu com uma veia inesperada para a realização de vídeo.

A determinado momento noto que no solo já não existe uma película de água. É sal húmido. E um sal que queima os pés, especialmente por causa da fricção. A aventura do salar está a chegar ao fim. O sol já vai baixo. Há momentos em que não se vê vivalma. Somos nós e o deserto salgado.

A cordilheira está mais próxima. Havemos de fazer ainda uns 80 km por picadas pedregosas antes de chegar ao abrigo para pernoitar. Mas isso será dali a vários horas.

O Paco vai-me perguntando a distância, sou um navegador improvisado. Não para lhe indicar a direcção que para isso o mestre não necessita de ajuda.

O carro rola agora mais depressa. Aqui não há estradas. A navegação, diz-nos ele, é feita pelas referências exteriores, especialmente as montanhas e o seu perfil.

Já é quase noite quando chegamos ao fim do salar. Dali, há uma estrada elevada, feita sobre as últimas salinas, que seguimos durante vários quilómetros.

O céu está escuro. E apesar do adensar das nuvens, conseguimos ainda ter um cheirinho do pôr-do-sol. A bem dizer esta foi a única coisa que não caiu em cheio na perfeição neste dia. Diz o Paco que o pôr-do-sol é um espectáculo fabuloso por aqui, mas hoje foi algo mais tímido. Não me queixo.

Passamos um lugarejo. Há uma cancela, que está aberta. O Paco para o carro por instantes, olha em redor. Não percebemos a situação. Penso que seria ali o controle do pagamento da taxa para visitar o Parque Nacional, mas como não estava ninguém segiu-se sem mais delongas.

A esta hora estou arrasado. É o efeito da altitude no meu corpo. Os olhos estão raiados de sangue, os lábios gretados. A minha energia é muito limitada. A altitude média no salar é de 3.600 metros. Mas agora estamos mais altos. Vamos dormir acima dos 4.000 metros.

Fazemos dezenas de quilómetros sem qualquer luz, por caminhos incríveis, por vezes parecendo o leito de uma ribeira seca.

Por fim chegamos. Todos cansados. E tiro aqui o chapéu ao Paco, um homem de quase 70 anos com uma capacidade física que parece inesgotável.

No abrigo onde pernoitaremos há mais 2 ou 3 grupos de viajantes. É-nos servido um belo jantar. Infelizmente estamos cansados de mais para apreciar o ambiente e para sociabilizar. E mais um luxo: todos temos direito a quartos privados. Há duches quentes mas pagos à parte.

Durmo que nem uma pedra, claro. O silêncio é total e o cansaço ajuda.

 

 

 

 

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