Dia 20 de Fevereiro de 2020, Quarta-feira

Vamos para o segundo dia desta aventura pelo salar de Uyuni e pelo deserto que o envolve. Será o único dia completo, amanhã cruzarei a fronteira com o Chile e deixarei para trás a Bolívia. E digo desde já, este é um dos países que mais gosto na América do Sul. Para mim, só tem competição por parte da Colômbia.

O pequeno-almoço é variado e agradável de tomar. A turma reúne-se à mesa. Pouca conversa, que custa a acordar. O cansaço acumulado faz-se sentir e no meu caso sofro também com a altitude. Um sofrer moderado, perceptível na exaustão constante.

São oito horas e o Paco ainda não se mostrou. Procuro-o e parece que está a acabar o pequeno-almoço noutra sala, com o pessoal da casa. Lá aparece. O passo seguinte é mandar para o tejadilho as mochilas e acomodar aquilo tudo de forma sólida.

Tenho pena de não ter tido algum tempo para explorar o lugarejo onde passámos a noite. Pareceu-me interessante.

Vamos a caminho. O dia será todo feito a rolar em ambiente de deserto. O céu hoje está mais carregado. Mas sempre espectacular. Também está bom, não me queixo.

Se até agora ver vicuñas, os parentes selvagens dos lamas, era um acontecimento, aqui estão por todo o lado, banalizaram-se. Passamos perto de um grande grupo. O Paco pára por uns segundos. Os animais estão a uns 3 metros.

Andamos e andamos. Sempre deserto. A mesma paisagem. Talvez se tornasse monótono ao fim de alguns dias, mas é tão espectacular que não cansa quando se atravessa assim. Ao fundo, as montanhas. Agora mais próximas do que na véspera.

O Paco faz as suas paragens planeadas. Uma no meio do deserto. Sabe bem esticar as pernas, receber aquele vento, sentir um pouco do frio. Outra, numa base, uma loja perdida no meio de nada, onde se servem sandes de carne de vicuña e se podem comprar abastecimentos básicos e usar a casa de banho. Por um preço, claro. Em redor existem formações rochosas bastante fotogénicas. É um local que parece saído de uma cena de Apocalypse Now. Surreal. A música com uma batida que se ouve a quilómetros de distância traz uma nota de burlesco adicional.

Vamos encontrando lagoas, que parecem ser muito apreciadas pelos turistas que o Paco costuma trazer, pois ele anuncia-as com excitação e mostra-as entusiasmado, uma após a outra. O nosso grupo não partilha do interesse elevado. São bonitas, é verdade, mas sucedem-se e ao fim de ver um par delas torna-se aborrecido. Simplificando, são quase iguais.

Ao meio-dia chegamos a mais uma lagoa, mas aqui será diferente: hora de comer! Há uma casa abrigo com uma sala de refeições que as agências usam a troco de um valor pago ao proprietário.

O Paco deixa-nos a umas centenas de metros.  A ideia é caminharmos e apreciar a paisagem enquanto ele acelera até lá e prepara a mesa da refeição.

O frio é cortante. Há flamingos. Em muitas destas lagoas existem colónias destas aves. O céu está forrado com nuvens ameaçadoras, espectaculares, nas suas nuances de cinzento que cobrem tudo, desde o branco até ao negro puro.

Mais uma boa refeição. Depois do almoço o cansaço aperta e, já no carro, uns quilómetros à frente, todos os meus companheiros de viagem dormem.

Avançamos. Deserto e mais deserto. Outra vez. Os lugares têm nomes e alguns deles histórias, que o Paco, claro, conhece e partilha connosco.

Encontramos uma formação rochosa junto à qual se encontram estacionadas uma série de viaturas como a nossa. O que há ali de notável? Uma colónia de animais, uns roedores aparentados com as chinchilas. Habituados como estão às pessoas, aproximam-se bastante. Recolhem as oferendas, os pedaços de maçã e similares que os turistas lhe deixam, e fogem para uma distância segura para se deliciarem com a comida. São loucos. Um deles voa literalmente de uma rocha para a outra, sem se importar com a presença de um alto humano a meio do percurso. Não fosse o alemão baixar-se, com excelentes reflexos, e teríamos uma colisão em pleno voo.

De repente, como se tivesse sido ensaiado, os outros humanos partem todos. Ficamos só nós e a experiência torna-se ainda mais espectacular.

Por fim também nos metemos na viatura e arrancamos. E naquele preciso momento, abre-se o céu e cai uma carga de granizo como nunca vi. As pedras não eram especialmente grandes, mas a densidade era. Em segundos a paisagem altera-se. Até perder de vista é como se estivéssemos rodeados por um manto de neve.

Mais à frente há outra pausa. Trata-se da Árvore de Pedra, uma formação rochosa incrível, em forma de árvore, tendo como que um tronco e uma copa. A estranha rocha foi trabalhada pelos elementos durante milhares de anos, e como a sua base era mais macia, sofreu a erosão de forma mais intensa. Certamente não estará assim durante muito mais tempo. Um dia, a copa simplesmente partirá o tronco.

É um dos pontos mais populares desta área e há muita gente a ver a estranha “árvore”. a uma certa distância, talvez a 50 metros, um coiote está sentado a observar aquela loucura humana. Talvez esperando uma prenda deliciosa. O Paco diz para termos cuidado porque não se pode confiar naqueles dentes.

Daqui para a frente não se passará muito mais. Apenas a multiplicação ao segundo de todo aquele estímulo sensorial, o viver de um dia fantástico num recanto único do planeta Terra.

Veremos mais umas lagoas e grupos de vicuñas. Chega a hora do dia em que o cansaço toma conta de mim. Estou a ficar num estado deplorável. Preciso urgentemente de descansar e espero que San Pedro de Atacama, no Chile, seja adequado para as minhas necessidades.

Hoje chegamos à base para a noite um pouco mais cedo que na véspera. Depois de alguma angústia, porque o Paco parece não encontrar um lugar para dormirmos. Ao telefone liga aos pousos habituais, mas todos dizem que estão cheios. Sente-se uma tensão nervosa dentro do carro, mas como eu vou ao lado dele tenho uma percepção diferente da situação.

Por fim chegamos a um complexo de aspecto desolado. Há um camião. Talvez abandonado, talvez ainda funcional. O fim da tarde está triste, muito cinzento, a ameaçar chuva.

O Paco procura alguém por ali. Há uma conversa, que observo à distância. Alívio. Chega o sinal para sairmos. Está encontrado o lar para a noite.

Segue-se uma longa espera pelo jantar. Eles não contavam com clientes, não há nada preparado. Mas com boa vontade e trabalho as duas moças do local preparam uma refeição para nós.

Tomada num canto de uma sala grande. Um momento especial. Um certo sentimento de despedida. Será a última refeição em grupo. O Paco traz vinho, um néctar que tinha guardado para este momento especial. Mas estamos demasiado cansados para o apreciar. Eu certamente não lhe toco. Seria um agravar dos sintomas causados pela altitude. Álcool e altitude não conjugam nada bem.

O quarto é comum. Os neo-zelandeses ficam com um só para eles, todos os outros dormem num espaço com várias camas. Está um frio atroz. Durmo todo vestido e agradecendo as sucessivas camadas de mantas quentinhas que existem na cama.

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