Este foi um dia muito especial, que começou bem, foi devidamente preenchido e teve um fecho inesperado e, porque não dizê-lo, mágico…

Na véspera estava no conforto do quarto no Abrigo do Botelho e meti conversa com um amigo de longa data que, pelo que sabia, tinha sangue goense a correr nas veias. Logo me disse que se estava em Goa tinha que ir visitar a casa onde a mãe tinha nascido. Ora eu, que até planeava ir para aqueles lados, só tive que ajustar planos, remover outras casas históricas que tinha listadas e incluir a Casa Figueiredo no roteiro.

Portanto, pela manhã, depois de mais um pequeno-almoço no querido Abrigo do Botelho, lá caminhámos até à estação de autocarros de Panjim, procurando e encontrando com muita facilidade uma viatura que fosse para Margão. O amigo Roy tinha-nos passado a informação toda. Só uma vez falhou e não foi neste dia.

A viagem para Margão é algo desinteressante. A paisagem não é especialmente cativante e rapidamente se torna apenas uma questão de deixar os quilómetros passar. Eventualmente chegamos. Antes de prosseguir para Loutolim temos planeada uma breve visita a Margão, esse nome que me acompanha desde menino, quando agarrava no frasco de canela moída para polvilhar o arroz doce ou a aletria que a minha mãe preparava.

Já sabíamos que a estação de autocarros onde chegaríamos ficava fora do centro. Um problema? Não. Ainda o nosso autocarro não se tinha imobilizado e já uma grande dinâmica acontecia em direcção a uma outra viatura. “Center, center, center!”. É já. Rápido e simples!

Vamos lá então ver isto. Não gostei. O centro de Margão é caótico, bem mais do que a capital, Panjim. E não encontrei nada que me fascinasse. Umas voltas por ali, uma passagem junto ao mercado, mas estava tão desconfortável com a multidão que encurtei o passeio. Uma bebida fresquinha tomada numa esplanada simpática e agora era voltar para a estação de autocarros.

Tarefa aparentemente simples mas que se complicou. Na esquina onde tínhamos sido deixados, nem sinal de autocarros a passar no sentido oposto. Perguntar a algumas pessoas, indicações opostas. Lá entrámos num cujo picas dizia que ia para a estação, mas não ia, aquilo foi verdadeira extorsão. Mandou-nos sair mais à frente, cobrou o seu bilhetinho e deixou-nos mais longe do destino. Lá perguntámos a outras pessoas que indicaram a paragem. Esperámos e esperámos e nada. Mas o nada deu em algo porque lá apareceu o que precisávamos. Acabámos por voltar ao centro e, finalmente, para cima, em direcção ao norte da povoação.

Como na realidade não queríamos sair na estação rodoviária mas umas centenas de metros antes, foi um problema para passar pelas pessoas que criavam uma massa compacta que obstruía as saídas, mas lá se conseguiu.

 

Agora sim, Margão ganhava outro sabor. O conselho do Roy para aqui tinha sido em cheio. A igreja do Espírito Santo, a praça fronteira e as casas que envolviam aquele espaço entraram em imediata harmonia com o meu imaginário de Goa. Num campo de futebol de terra batida duas equipas de meninos com uniforme escolar disputavam uma partida, levantando nuvens de poeira avermelhada em jogadas de grande alarido.

A alameda ali próxima encontrava-se ladeada de casas de estilo colonial, pintadas de cores garridas, decadentes. Uma delas, em ruínas, era especialmente charmosa, e foi ali defronte que um senhor nos perguntou em inglês de onde éramos. Logo mudou a conversa para português. Uma constante nesta visita a Goa. Pessoas, concerteza já desconfiadas da nossa origem, a procurar conversar um pouco na nossa língua.

Bom, vivido aquele momento era hora de procurar o autocarro para Loutolim. A estação não era longe, talvez uns 600 metros, vencidos a pé. E agora encontrar o autocarro certo? Uns diziam que se apanhava no exterior, outros, no interior do terminal. Por fim um senhor com bom inglês e que pareceu bem informado explicou que para Loutolim os autocarros partiam de um outro terminal que existia no centro, precisamente de onde tínhamos vindo.

E lá fomos, com ele, num autocarro que entretanto passava. Descoberto a estação, o que não foi fácil porque está um pouco escondida, foi fácil descobrir a viatura certa. Estava vazia. Foi preciso esperar que lentamente se compusesse para então arrancar. A meio do caminho estava tão cheia que ao chegar a Loutolim – que me pareceu logo fascinante – estava a ver que não conseguia mesmo sair. Mas lá fomos cuspidos para o exterior.

Loutolim. Maravilhoso. Atmosférico. A cena de Margão, com os meninos a jogar à bola no pelado, quase que se repete aqui. Só que agora toda a envolvência é mais rural, há uma atmosfera de aldeia. Ali por detrás, uma pequena igreja com um cemitério que visitamos. Quase todas as campas pertencem a pessoas da mesma família… a do meu amigo.

Ficamos por ali a viver o momento, a ver o jogo de futebol. Enquanto os meninos disputam a bola, as meninas dão apoio e incentivo e tudo isto remete-me para as memórias de escola e lembro-me de como as coisas por lá eram exactamente da mesma forma.

Mas era preciso chegar agora à Casa Figueiredo, que ficava a umas boas centenas de metros, na realidade a mais de um quilómetro. E estava calor. Bem, para quem quer vir a Goa e encontrar um bocadinho onde o tempo parece ter parado, sem turistas e com muito ambiente da era portuguesa, Loulotim é obrigatório. Para além da Casa Figueiredo existem outras que merecem uma visita e uma deslocação até esta aldeia assegurará um dia bem passado.

Vamos caminhando e está calor. Sua-se muito. Alguma fome. Descobrimos uma tasca familiar onde se vende comida e bebidas frescas, mesmo o que precisávamos e bem próximo já da Casa Figueiredo. Fizemos então uma pausa, até porque estávamos ligeiramente adiantados em relação à hora agendada com a Maria de Fátima, prima do meu amigo. Ali nasceu, mas viveu toda uma vida em Lisboa… para já numa fase avançada da carreira decidir regressar a Goa para pegar no projecto de salvamento da casa de família, ameaçada pelo tempo e pelo abandono que se começava a adivinhar.

Abraçou a ideia com toda a força, restaurou espaços, preparou a mansão para receber visitantes. Actualmente podem-se visitar as suas salas, como que numa casa-museu, mas o melhor mesmo é pernoitar e ouvir as muitas histórias que ali existem para serem contadas.

Bebemos um chá, conversámos, tivemos a honra de ter uma visita guiada. Gostaríamos de ali ter dormido, mas tudo isto aconteceu de repente e já tinha tudo planeado para os dias de Goa. Talvez numa segunda visita, que certamente acontecerá.

Por fim pensou-se em regressar. Não tinha sido propriamente simples chegar até aqui e imaginava já a árdua jornada de regresso a Panjim. E foi isto que dissemos à Maria de Fátima que nos fez um convite que muito me honrou, uma proposta irrecusável: disse-nos que o seu condutor estava a chegar para a levar e ao seu simpático filho, que aceitou o desafio de deixar Lisboa para trás e começar ali tudo de novo, ao festival de música que tinha lugar na Igreja do Alto em Velha Goa. E tinha bilhetes para nós. Depois nos deixariam no Abrigo do Botelho em Panjim. Uma loucura que me fez cintilar os olhos!

E assim foi. A viagem foi um bocado penosa, não pela excelente companhia, mas porque estava a enjoar um bocado com a condução do tipo ao volante, mas à chegada o mal-estar passou rapidamente. O cenário parecia saído de um filme. Era um final de tarde esplendoroso, faltando pouco para o pôr-de-sol. A igreja, ou capela, chama-se do Alto por uma boa razão. Lá está ela, em cima, com vistas privilegiadas que chegam bem longe e cobrem toda a zona de Velha Goa. O condutor deixou-nos à porta do acesso e seguiu, para parquear o carro.  Vieram-me memórias dos meus melhores tempos na Marinha e dos eventos onde cheguei assim, em estilo… recepções em navios de guerra estrangeiros, cocktails em embaixadas… vantagens ao dispor de um oficial de relações públicas da Marinha.

Outros convidados subiam a longa escadaria, assente há centenas de anos, dirigindo-se ao recinto da capela, onde a primeira parte da jornada diária do festival teria lugar. O que se seguiu foi ainda mais extraordinário: com o astro-rei a desaparecer no horizonte, numa grande bola cor de fogo, um trio inicia o espectáculo. O músico faz elevar as notas do seu instrumento, sublinhando a atmosfera incrível. Uma voz conta histórias, lendas de um tempo sem fim, e em simultâneo uma figura feminina evolui, numa dança lenta, como que brincando com o sol que se despede do dia, mesmo por detrás.

De uma forma geral não estaria feliz rodeado de uma audiência composta quase na íntegra por estrangeiros, mas por alguma razão, ali e naquele momento era a companhia que sentia fazer sentido. A noite vai caindo. Afasto-me um pouco, captando a essência da performance à distância. Existe um stand montado onde se podem comprar bebidas e comida. E dali a vista é ainda mais ampla. O calor tropical afaga-me a pele, sinto-me acariciado. Por tudo aquilo, pelo mundo.

Já é de noite e faz-se um intervalo. Descubro uma pequena banca onde se vendem bilhetes para a noite de fado que terá lugar no auditório de Panjim precisamente na nossa última noite na Índia. Maravilha, mesmo o que eu queria. Ingressos comprados.

A segunda parte agora será no interior do templo. Um grupo de canto coral vai interpretar temas em várias línguas. No incontornável latim, mas também em inglês, na língua local e também em português, claro. Que noite!

Bem, nada dura para sempre e a magia quebrou-se enfim. Caminhámos monte abaixo, encontrando o “nosso” carro sem problemas. E agora, para Panjim!

 

Ainda nos convidaram para nos juntarmos a eles. A namorada do filho estava a cantar o fado no restaurante de um hotel. Mas não quisemos forçar mais a nossa presença. Já tinha sido muito bom.

Ficámos ali, bem no centro, a um passo de tudo. A noite em Panjim estava também agradável. Quente mas não demasiado, como as dos verões de antigamente em Portugal. A fome apertava e a ideia era visitar o restaurante do Clube Vasco da Gama.

Fomos entrando, sem saber bem o que nos esperava. Escadas acima, e para dentro da sala. O que vejo ali parece-me uma viagem no tempo. Pelos relatos que ouvi de tanta gente, pelas fotos que vi, pelas reconstituições em cinema.. por tudo isso reconhecia aquele ambiente: estava nos finais dos anos 60, no Império moribundo, algures no mundo português.

Conseguimos uma das duas mesas que estão posicionadas como que numa das pequenas varandas, beneficiando de uma certa vista para a cidade e de uma simpática brisa. Consultei o menu, em português, e apeteceu-me tudo. Fiquei-me por um rosbife bem regado com cerveja. E que delicioso! Depois da refeição, enquanto bebericava um fenim (aguardente) de caju, descobriram os portugueses e num repente estava ali o gerente do restaurante e outro ilustre goense, sentados à nossa mesa, a conversar… e como se falou naquele serão que gostaria que fosse sem fim. Fechou o restaurante, encerrou tudo e ficámos nós… vantagens de estarmos com aquela companhia.

Queríamos regressar na última noite de Índia, que passaríamos em Panjim, mas coincidia com o descanso semanal do Vasco da Gama. Que pena!

Acabou um grande dia com um passeio descontraído até casa, passando pela igreja da Imaculada Conceição, magnificamente iluminada aquela hora.

 

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