Dormi bem, com alguns ocasionais despertares de pouca duração. Eram sete e pouco quando acabou totalmente a vontade de dormir.

São Paulo acorda em massa,  quarto do Minervino está na via principal da comunidade, a esta hora passam pessoas sem parar. Meninos que vão para a escolha e me olham curiosos e envergonhados, alguns directamente, outros pelo canto do olho. Uns quantos dizem-me “bom-dia”. Passam homens bem vestidos para um dia de trabalho que assim o exige. Mulheres que vão a algum lado, talvez trabalhar, talvez comprar algo. Alguns dos aldeões cumprimentam-me quando passam.

Já pela manhã as actividades do Partido vão-se reiniciar e o Minervino deixa-me para ir à reunião. Hoje  trabalhar, e já recolheu a informação sobre como chegar ao Cacheu. É preciso primeiro ir a Canchungo e lá apanhar o transporte final para Cacheu. Serão mais ou menos 1.000 + 500 CFA. 2,25 Euros.

E de repente, mudança de ideias. Já não vou hoje. Vai dar muito tarde, vou apanhar a hora do calor na rua, no transporte, e além disso, tacticamente prefiro sair logo pela manhã, para precaver qualquer problema que possa surgir. Tenho fobia a ficar em apuros, chamem-me ultra-cuidadoso, é verdade.

Chega o Minervas e digo-lhe o que penso e ele concorda. Tudo certo, fico mais um dia, ele não vai trabalhar, vai ser para relaxar. Tomo um banho mais prolongado do que é costume, até porque aprendi pela experiência: não me lavar depois do sol posto. Os mosquitos chamam-me um regalo. Ao princípio fiquei um pouco intrigado sobre aquelas picadas que tinha em partes escondidas do corpo. E depois fez-se luz, era quando elas me apanhavam descascado para o banho nocturno, que estava a fazer para arrefecer mais antes de dormir.

Troco de roupa, primeira muda em seis dias, porque vai haver tempo para lavagens. Sinto-me bem melhor depois de uma boa esfregadela e com roupa limpa no pêlo.

O Minervino arruma e limpa o quarto. Manda-me esperar do outro lado da rua, à sombra, e coloca um banquinho lá para o efeito. Leio enquanto ele trata da faxina. Depois vamos para a zona da família dele, um local na aldeia onde vivem mais ou menos juntos.

Compramos batata doce frita e amendoins. Ele arranja-me um cantinho acolhedor à sombra de uma árvore, colocando uma cadeira para mim e outra como mesa, enquanto vai lavar a roupa. As mulheres estão também em lavagens, há meninos e pessoas que passsam e cumprimentam. Tiramos umas limas da árvore, sabe-me bem, a vitamina C.

Vou petiscando os amendoins e uso o telefone para um pouco de internet. Andam ali gatos, “pintos” de pato, porcos, bácoros e cães. Os meninos saem da escola, passam por detrás de mim num alvoroço de “bôa tárdis”. Sinto-me mal e bem, a um só tempo. Há um fosso cultural, civilizacional, que não me deixa relaxar. Aquela preocupação do que se pode fazer ou não. A frustração de estar numa situação de quase falar a língua mas não a falar, o que resulta em ter as pessoas a falarem comigo, a tentarem comunicar, mas eu sem entender muito e provavelmente elas entendendo menos. 

A frustração por não poder captar tudo aquilo em fotografia também doi, e de que forma. Resta-me gozar o momento, mas não sou muito bom nisso, porque sei que me esqueço e que sem memória não sei apreciar, e porque sem poder partilhar os instantes acaba por ser como ter comida sem sal. Falta qualquer coisa ao sabor dos momentos assim vividos.

 

Digo ao Minervino que vou à cidade, o que lhe causa a expressão habitual dos momentos em que me escapo sozinho para algum lado. Não sei se é decepção, tristeza ou qualquer coisa assim, mas certamente não é positivo. Ele é super protector, uma situação que já conheci noutros locais. É algo recorrente. Algumas  pessoas que vivem em sítios, como dizer, com menos condições materiais de vida, parecem estar convencidas que o Europeu é uma flor desprotegida, incapaz de encontrar o que precisa, de comunicar, de sobreviver no mundo deles. Muitas vezes faz-lhes confusão ver o viajante estar sozinho, querer estar sozinho, ser capaz de estar sozinho.

Mesmo assim leva-me à estrada, para mandar parar o toca-toca para mim. Viagem simples e encantadora como sempre.

São uns 7 km com mil e um detalhes para ver. O carro da instrução, as escolas à beira da estrada, os mercados… o próprio trânsito é “fascinação”.  Passa um carro com as sirenes ligadas. O condutor do toca-toca já sabe o que se segue… é preciso encostar para deixar passar o cortejo. Será o presidente? O primeiro-ministro? São umas vinte viaturas, que passam em grande velocidade… primeiro os batedores de mota, depois jipes, carros militares, camiões carregados com militares armados até aos dentes, vão passando e passam mais, o condutor já resmunga… “uns cinquenta carros pá!…”.

Um armazém de perucas anuncia: “cabelo humano indiano”. As perucas são um grande negócio aqui. Ss mulheres renegam o seu cabelo africano, querem outra aparência, longas cabeleiras, por vezes louras. Os catálogos são vastos e o produto é amplamente utilizado.

Chego ao Olho d’Água, como chamam aqui às torres de água. Já conheço a zona, já me sinto em casa. Agora é caminhar. Ao fim destes dias a câmara fica na mochila, não vale a pena fotografar de novo o que já fotografei, e quanto às pessoas, sempre diferentes, é complicado, não gostam, têm fobia a câmaras.

São 14:30 e o calor é intenso. O céu está completamente limpo, a temperatura sobe. Sem problemas, nada que quem viva o Agosto português há tantos anos não possa suportar. Chego ao centro e vou almoçar a um restaurante que me tinha ficado na ideia. Algo entre a tasca local e o sítio para estrangeiros. O Minervino falou que os preços seriam 1500 para um prato mas não… o bitoque custa-me 5.000 CFA. Tudo bem. Suspeito que não me deixam comer o prato do dia e me impingem o menu em português, mas como disse, tudo bem, está-se óptimo aqui. É uma casa relativamente antiga, certamente do tempo dos portugueses. Fico a pensar um pouco nas pessoas que aqui viveram nesse passado que me é parente.

No tecto as ventoinhas rodam. Há um balcão feito de madeira, com vitrinas vazias, Era um bar. Na parede estão as prateleiras que já suportaram garrafas de Porto e Whiskey. É um espaço amplo, com um arco a meio. Uma frase que deve estar ali há cinquenta anos diz: “Estimados clientes, bemvindos ao colete encarnado”. Um proprietário vilafranquense? Quem lhe sucedeu respeitou pelo menos o encarnado. Por fora o edifício está pintado nessa cor, com publicidade da Coca-Cola e mesmo por dentro meia parede é vermelha escura, com o restante, estendendo-se até ao tecto, em azul.

Decido ir ao meu pouso habitual em Bissau, o Ta-Mar. Esta é a minha cerimónia pessoal de despedida. Este passar pelos locais que adoptei temporariamente como meus. Dei uma certa volta, passei pela zona que parece ser a mais mafiosa da cidade, onde há homens sentados, propostas de câmbio, mulheres atrevidas que vendem produtos locais.

Dou com o Ta-Mar e instalo-me na mesa de sempre, ao pé da árvore de Natal, junto à ficha sextúpla, debaixo da TV que está sintonizada na RTP África. Só que da mochila não sai o meu power bank solar. Esvazio tudo e não está lá. Só pode ter ficado esquecido no Colete Encarnado. Revi mentalmente os últimos minutos. Ninguém poderia ter conseguido tirar isto da mochila e além de mais havia lá coisas mais acessíveis e mais interessantes.

Pago apressadamente a minha Mini e vou até lá, com pouca esperança. Se ficou, já terá ido. Sejamos realistas, é Bissau. Mas qual não é o meu espanto quando assim que entro a moça que lá está levanta-se e tira o meu power bank de uma gaveta. Wow! Boa! Gosto de Bissau. Gosto, gosto, gosto. E não só por causa disto, claro.

Bem, volto ao Ta-Mar, despejo mais três Minis enquanto trabalho. O tempo andou mais depressa do que gostaria. Quero abraçar a cidade e não a deixar ir. Quero ficar mais. É parvo mas é assim. A mal-amada Bissau é-me querida.

Descobri nestas andanças o supermercado Ghada de que o Minervino tinha falado mas antes disso entro noutro para comprar papel higiénico, um bem que ainda não tinha visto na Guiné.

O dia está a acabar, e até porque não quero chegar já de noite – e encontrar o caminho para casa na escuridão – não me posso demorar muito mais. Vou subindo, fazendo o meu caminho de todos os dias por uma última vez. Passo junto ao estádio do futebol e entro, sem razão, só para ver como é…. E tenho uma das maiores surpresas dos dias de Bissau: há centenas largas de pessoas por ali… especialmente homens jogando partidas de futebol, mas também espectadores e gente que simplesmente passeia.

 

Estes movimentos desportivos de massas fascinam-me sempre. Adorei ver isto em Essaouira, Marrocos, em São Tomé e Cabo Verde. O sol já vai baixo, e os pés dos jogadores levantam alucinantes núvens de pó. São dezenas de espirais. Significativamente a Casa do Benfica e o Sporting Clube de Bissau encontram-se por perto, nas ruas que ladeiam o estádio.

Hora de ir para casa. O ponto para apanhar o toca-toca é mesmo ali acima. Com o passar dos dias a distância foi-me parecendo cada vez menor. Eu chego e vem logo um, mal pára para eu entrar e estamos a caminho. É um imenso prazer usufruído com uma nostalgia antecipada, passar pela confusão daquele engarrafamento de hora de ponta, vendo as pessoas que se atropelam por um lugar nas  carrinhas, os atabalhoados  polícias de trânsito, as vendedoras e as mulheres e moças com aquelas roupas garridas. Lado a lado vem outro toca-toca, o condutor diz-me qualquer coisa amigável – uma raridade na Guiné – que eu não compreendo, mas sorrio mesmo assim, respondo com os chavões do costume “yeah, tudo bem” e mesmo ali assim, eu à janela e ele a conduzir na outra faixa de rodagem, damos um “high 5”.

O Minervino liga-me. Vai ter de sair e deixa a chave no parapeito da janela. Ao sair do toca-toca, ainda em estado de êxtase depois de uma viagem tão agradável, a câmara salta-me outra vez da mochila e bate no chão, desta vez de uma altura maior, porque ainda estava empoleirado lá em cima. Vejo a bateria saltar, os guineenses todos a querer ajudar, o ajudante, sempre tão imprestável a dizer ao condutor para não mexer o carro nem um pouco. Recolho o meu equipamento, um cidadão dá-me a bateria e o ajudante, já quase em andamento, pela janela, chama-me e passa-me a tampa do compartimento da bateria. Nem quero ver. Deixo para quando chegar, preciso de respirar fundo.

Já o lusco-fusco vai avançado e é uma pena porque perco grandes fotos… a câmara está boa e a tampa é só encaixar. Milagre e um bravo para a Nikon.

Lá na rua, em frente a casa, um bando de meninos brinca, num corropio louco de felicidade e risos. Há alguns balões que fazem magia. E quando me descobrem, ali sentado a vê-los, é o máximo, posam para fotografias, rodeiam-me,  como uma nuvem de borboletas que pinta o mundo de alegria. Uma pequenina apaixona-se por mim, tímida, vem-se encostar ao meu ombro. Outro, só um pouco mais velho, pede-me em crioulo para lhe dar um nó no balão. Um amigo traduz. Vêem as fotos que tirei, perguntam pelo Minervino. E tudo isto com uma delicadeza e uma educação que me deixam bem impressionado.

Com os meninos ali não quero ir buscar a chave, sei lá, traquinices, é melhor não saberem do segredo… oh ilusão minha… há logo um que pensa que estou na rua porque não consigo entrar, trepa à janela e oferece-me a chave com ar de generosidade. Que jóias!

Aprecio o momento de sossego, depois chega o Minervino, vamos à loja do Ahmed o Mauritano, compro yogurtes, leite com banana… passeamos um pouco, compro bananas, batatas doces fritas, voltamos por outro caminho. Passo o resto do serão a ajudar o meu amigo a reinstalar o Android e respectivas apps.

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