Dia 12 de Março de 2020, Quinta-feira

Mais um dia bem preenchido em Buenos Aires. Sem grande pressa despertei. Estiquei-me bem, fui à janela verificar o tempo. Agradável. A borrasca da véspera tinha sido deixada para trás e mais um bonito dia me era prometido. Céu azul com farrapos de nuvens. Até nas condições climatéricas Buenos Aires me recebeu bem, apesar das prévias ameaças de dias de mau tempo ininterrupto.

Tomei o pequeno-almoço tranquilamente na mesa da cozinha. Quando saí para a rua já a manhã ia a meio. Mas sem stress. Agora vou apanhar o autocarro para o bairro popular de La Boca, uma zona proletária, operária, com alguns problemas de segurança, mas também uma das áreas mais interessantes e pitorescas de Buenos Aires.

É fácil encontrar o transporte. Segue por avenidas amplas, num eixo natural da cidade. Logo estou a chegar. Saio uma ou duas paragens antes do final da linha e vou a pé até ao estádio do Boca Juniores.

É um bom passeio. Afinal não comem criancinhas nem estrangeiros em El Boca. Pelo menos não aqui. Há muito comércio.

Aproximo-me e nem preciso de perguntar. Ouço logo que o museu está encerrado. Por causa do virus. É a primeira vez que o COVID-19 se atravessa no meu caminho. O americano que quer visitar não parece convencido mas o segurança, que tem volume de um amplo armário, repete e não se demove.

Então é assim que estamos… e devia ser por isso que o Museu do River Plate já estava fechado para tours do estádio ontem. Daqui para a frente vai ser isto em crescendo. Neste dia ainda apanhei abertos os outros locais que visitei, mas no dia seguinte já estava tudo encerrado.

Em redor do estádio há um ambiente fantástico. Bonitas lojas de recuerdos, onde a principal atração é Diego Maradona, que aqui nasceu para o futebol. Há muitos turistas, nacionais e estrangeiros, que, impedidos de entrar no museu, deambulam por ali. Tal como eu.

Bem, vou seguir. Andar a pé até El Camiñito, um percurso turístico criado em La Boca, desenhado para os visitantes estrangeiros. É uma espécie de reserva protegida, isolada das potenciais ameaças de um bairro pobre de Buenos Aires. O trajecto desde o estádio faz-se bem. Tinha feito os meus trabalhos de casa e chegado conclusão que a questão da segurança não seria um problema.

O ambiente é interessante. Casas pitorescas, gente igualmente pitoresca. Um homem empurra um carrinho carregado de ovos. Os edifícios estão degradados e os carros são velhos, muitos deles decrépitos.

Gostei muito de visitar La Boca. O El Camiñito, enfim, uma palhaçada para turistas, com restaurantes onde os estrangeiros comem protegidos por um escudo invísivel, como se viessem almoçar dentro de uma gaiola num mar de tubarões. Num deles há um espectáculo de fado. As casas em redor são muito coloridas, estão devidamente restauradas, claro, pelo menos no seu exterior. Valem algumas fotografias.


Cheguei ao fim e procurei a paragem de autocarro para regressar. Não precisei de esperar. Vinha um a chegar e dei uma corridinha para saltar para o seu interior e seguir viagem.

Levo comigo uma memória doce deste bocadinho de manhã. Se tivesse tempo, regressaria ao bairro. Várias vezes. Gostei de ver aquelas ruas, fora da rota turística. Os murais alusivos à repressão da ditadura, inevitavelmente mais pronunciada num bairro operário. Os altares de rua, incluindo um dedicado ao culta da Morte. Terei que regressar aqui, em tempos de vida, se me for permitido.

Agora vou regressar ao centro. Quer dizer, se se pode falar de um centro em Buenos Aires. Passo junto à Casa Rosada e do interior do autocarro vejo um helicóptero a chegar. Talvez o presidente da Argentina.

Desco mais à frente. Hora de caminhar um pouco por estas bonitas avenidas. Vou encontrar a livraria El Ateneo. Uma maravilha! Trata-se de um teatro clássico que foi renovado de forma a albergar uma imensa livraria. Mas todos ou quase todos os elementos da antiga sala de espectáculo foram preservados. As pessoas sentam-se nos camarotes para esfolhear um livro. No palco existe uma cafetaria. E onde era a plateia há um sem número de corredores de prateleiras repletas de livros. Um sonho e um lugar a visitar sem falta em Buenos Aires.

Vou caminhando pela cidade. Aqui encontro elementos de interesse sem o esperar, aparecem-me ao caminho. Tenho que investigar no telefone o que vejo. Por exemplo, dou com um magnífico palácio que afinal não o é. A fantasia da decoração exterior é apenas uma capa. Quando foi construído, no seu interior, havia uma série de enormes depósitos de água. Fantástico! Agora os depósitos já não funciona. Existe um museu e ali estão alojados os serviços municipais de abastecimento de água e mais uns escritórios e empresas.

Mais à frente dou com o Mercado do Abasto. Um dos mercados clássicos da cidade, lugar de paixão de Carlos Gardel que não vivia longe daqui, como verei, foi transformado num centro comercial. Mantém a traça original no exterior. Assim se preserva a História com qualidade. Adoro Buenos Aires, já tinha dito?

Está é também uma zona onde existe uma forte comunidade judia. Isso vê-se nas ruas, com alguns homens vestindo tradicionalmente e restaurantes anunciando menus kosher. Há por aqui sinagogas. E comércio muito tradicional. É uma área da cidade muito interessante.

Procuro a casa museu de Carlos Gardel. Desde que vi um artista de rua em Bogotá replicar a música deste ídolo do tango, desenvolvi um certo interesse pela personagem.

Na rua da casa onde Carlos comprou uma casa para a sua mãe e acabou por viver os últimos anos da sua vida, antes de perecer na queda do avião que transportava a sua comitiva numa tournée pela Colômbia, encontro bonitas fachadas decoradas com pinturas virtuosas. Não vi esta tipo de adorno em mais lado nenhum desta cidade. Só mesmo aqui.

Encontro a casa, entro. Um simpático senhor vende-me o bilhete para a visita e dá-me umas indicações sumárias. De certa forma a casa foi dececionante. Esperava encontrar o ambiente onde o artista vivia e afinal só restam as paredes. O espaço foi totalmente renovado, reconstruído. Parece novo em folha. Mas não me arrependi de visitar. Gostei de me sentar e ouvir algumas das suas músicas com auscultadores. Repousei os pés que já me doíam.

Percorri o resto da exposição. Havia algumas pessoas que também visitavam a casa-museu. Não muitas. Vi tudo com atenção, até porque é um espaço pequeno, não dá para enjoar.

Voltei à rua. Agora procuro uma estação de metro. Já que visitei a casa do Carlos Gardel vivo, agora faço questão de o visitar depois de morto, no cemitério de La Chacarita. Há uma estação mesmo à porta. Ali existe um pequeno hub de transportes públicos, com muitos autocarros e uma estação de comboio suburbano.

Aqui não há multidões de turistas. Apesar de ser o maior cemitério desta megalópolis, está vazio, deserto. O calor faz-se sentir. Passeio um pouco por ali, procurando o túmulo de Carlos Gardel, que encontro sem problema. Quando veio a enterrar juntou-se a maior multidão de que há memória na capital argentina. E ali está ele, o local do derradeiro repouso do artista, ponto de reunião na peregrinação que anualmente os muitos fãs fazem no dia do aniversário da sua morte, o 24 de Junho de 1935.

Gosto muito mais deste cemitério do que do La Recoleta. E não é só pelo sossego. É mais rico, mais pitoresco, mais variado. Tento atingir os cemitério inglês e alemão, mas depois de muito caminhar e já muito cansado, desisto. Só encontrei muros. Imagino que o acesso seja pelo exterior.

Tenho alguma dificuldade em encontrar o autocarro que procuro. Pergunto a um funcionário da companhia de autocarros que me aponta a muito discreta paragem certa.

Vou agora em busca do Jardim Japonês. Mais uma caminhada pelas ruas de Buenos Aires, estas com um sabor de classe média alta, e encontro a entrada do jardim. Paga-se bilhete. Foi dececionante. Não tem o charme de outros espaços deste género que visitei por esse mundo fora. E já bem falo dos que conheci no próprio Japão.

Muita gente, parece ser um lugar popular. Vejo um painel com atividades programadas, todas com um autocolante a anunciar o seu cancelamento. É o COVID-19 a fazer-se anunciar uma vez mais.

Não me demorei muito no Jardim Japonês. O dia estava a chegar ao fim, não porque fosse especialmente tarde mas porque estava a ficar estafado. Foi uma jornada com muitos quilómetros percorridos e, agora que começo a estar familiarizado com a rede de transportes públicos de Buenos Aires, ainda mais quilómetros feitos de autocarro e metro.

Ainda passei por uma bonita praça, a Plaza Germania, antes de apanhar o autocarro para San Telmo. O dia acabou, para todos os efeitos, na tasca do costume com mais um belo bife pela frente. A primeira página do jornal a que dei uma vista de olhos enquanto esperava pela refeição dizia que os EUA tinha suspendido todas os voos com a Europa. As coisas parecem estar a complicar. Deverei tentar antecipar o meu regresso a casa e anular a travessia do Uruguai e a partida desde Porto Alegre?

 

 

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