Dia 1 de Janeiro de 2020, Quarta-feira

Grande dia, alinhado com os augúrios de um novo ano. A noite foi passada de forma estranha. Havia um certo sentido de vazio por esta passagem de ano bizarra. E nem sou de festejar esta data, mas há sempre aquela euforia no ar, uns fogos de artifício, uns ecos de comemorações. Não aqui, não de 2019 para 2020. Seria um prenúncio da desgraça que se estava prestes a abater sobre o mundo que conhecemos?

Fiquei até mais tarde a usar a Internet. Estava desligado do mundo há mais de um dia. E especialmente nesta fase da viagem havia várias tarefas a cumprir, informação a recolher, os próximos passos que pediam preparação.

Depois veio o frio. Que a 2800 metros de altitude, mesmo a esta latitude, faz frio de noite. Dormi portanto, assim assim. Mas com a excitação da viagem que se iniciava, não foi um verdadeiro incómodo.

Bem cedo, pronto para caminhar de volta ao terminar e apanhar o autocarro para a cidade, estava a vestir-me e a colocar a mochila às costas. Dei a chave à ensonada funcionária e num instante estava na fila da buseta.

Um percurso já meu conhecido, de há quatro anos atrás. Sair na paragem do Terminal Norte, o que serve as terras de Antioquia, entre outras.

Subir as escadas da passagem aérea sobre a via rápida fez-me lembrar que estava a mais de dois mil metros de altitude. É aquela ofegância, que me viria a acompanhar durante semanas desta viagem, especialmente lá mais para baixo, pelos Andes peruanos e bolivianos.

Encontrar o balcão certo para comprar o bilhete para Santa Fé foi tão fácil como o tinha sido há quatro anos. Na Colômbia, há sempre alguém para nos ajudar quando é necessário, mesmo numa grande estação rodoviária como esta.

Bilhete comprado. Há que esperar ainda um bom bocado. Para o bem e para o mal a passagem pela Colômbia ficará marcada pela celebração do que chamam abstractamente de fiestas. Fazem o Natal, a passagem de ano e depois prolongam, durante mais uma semana em que o país basicamente pára. E isto trouxe-me um ambiente especial, mas também multidões e dificuldades acrescidas. Num dia normal teria seguido para Santa Fé logo de seguida, mas em época de fiestas os três autocarros seguintes estavam lotados e havia que aguardar umas horas.

A viagem não foi tão encantadora como me recordava. Creio que confundi com um outro trajecto que fiz a partir de Medellin, para Guatapé. Rapidamente cheguei, apesar das muitas obras na estrada. Estão a construir uma auto-estrada que encurtará ainda mais o tempo de viagem entre a grande cidade e Santa Fé. Para mim será o fim do charme desta bonita localidade. E mesmo assim, ainda sem a conclusão da obra, já a encontrei bastante transfigurada pelo turismo, doméstico e internacional. Foi um reencontro amargo. Como tantas vezes acontece as expectativas de voltar a abraçar esta velha amiga foram goradas por alterações indesejadas. Por mim, claro.

A encantadora casa de Santa Fé onde nos alojámos

Em 2016 tinha encontrado aqui um calor infernal. Desta vez estava apenas “quentinho”. Nada de especial. Facilmente se caminhou até à casa onde ficaríamos. Uma abordagem diferente da chegada improvisada e da procura de um cantinho para dormir da minha primeira passagem. Agora era um quarto AirBnB. E se perdi aquela chama da conquista e do quarto a preço ridículo, ganhei em charme. A casa era fabulosa e o seu interior encaixava-se naquele imaginário da arquitectura colonial espanhola, com um pátio interior que dava acesso aos vários quartos.

A anfitriã, a Doña Patrícia, foi a cereja em cima do bolo. Uma grande senhora, advogada de carreira feita na cidade, que se viu com este casarão em mãos e que com a ajuda remota do filho dava os primeiros passos no negócio da hospitalidade. Uma mulher bonita, em todos os aspectos, que nos recebeu à colombiana, com um sentido de hospitalidade sem igual.

O quarto, enfim, tinha um problema incontornável: o barulho da rua, e logo em época de fiestas. Para dormir, não tão mal, porque durante a noite a cidade parava. Mas descansar um pouco ao longo do dia ou do serão era impossível. Um mal menor para um alojamento quase perfeito e a um preço imbatível.

Também na mesma casa conhecemos uma portuguesa residente na Alemanha e o seu companheiro germânico. Um convívio que nos prendeu por mais tempo por ali, em redor da mesa centenária que como que presidia ao espaço social da propriedade.

Por fim saímos para a rua. Foi uma decepção. Há quatro anos tinha ficado apaixonado por Santa Fé de Antioquia. Desde então o turismo aumentou, o que seria de esperar, mas foi demasiado, desfigurou a povoação castiça e genuína que tinha conhecido. Agora há restaurantes chiques, oferta de alojamento sem fim. A encantadora praça principal sofreu obras de “requalificação”, uma palavra que me faz tremer de medo só de a escrever. Foram-se as chivas, a moça que vendia refrescos à barda, sempre rodeada de clientes. Civilizou-se Santa Fé, destruiu-se o carisma, o charme, a magia. Custou.-me.

Talvez seja ainda um sítio recomendável, mas quem o viu e pode comparar… Para se ter uma ideia, em 2016 passei três dias completos em Santa Fé e vi um estrangeiro, algum que de tão raro nos deixou à conversa durante um bocado. Um alemão, penso, que nem estava a pernoitar, tinha vindo de Medellin para um passeio de dia inteiro.

Enquanto passeava pelas ruas cheias de gente e carros a fome começou a apertar. Sem encontrar opções que me interessassem, enfadado com os restaurantes para turistas com preços altos e… cheios de turistas, acabei por comer numa tasca barata. Uma refeição de qualidade duvidosa mas pelo menos longe da confusão.

Um almoço por uns 2 Euros

Ali próximo, havia uma parada festiva. Já tínhamos ouvido falar numa procissão. Os polícias indicaram-nos com paciência o percurso delineado. Afinal a procissão era uma coisa diferente do que imaginava, uma espécie de desfile carnavalesco. Interessante.

Com o atraso na saída o dia aproximava-se depressa do fim. Começava a escurecer. A multidão, essa, adensava-se. Tinha a ilusão que as pessoas regressariam a Medellin quando o sol se fosse mas não, parecia até o contrário, cada vez havia mais gente. Era, enfim, a materialização da tal fiesta.

Bebi uma cerveja num café de que guardava doces memórias desde a minha primeira passagem pela terra. Não me soube tão bem.


Na praça central havia discursos. O alcaide falou e falou. A multidão revelava uma população incrivelmente politizada, com uma paixão por estas conversas que há muito se perdeu em Portugal. Havia música também, entre os discursos. O ambiente estava intenso. As esplanadas em redor da plaza, ainda mais do que existiam em 2016, estavam cheias. Vendedores de rua faziam uns dinheiros, encontravam-se linhas de barraquinhas vendendo sumos e petiscos exóticos e, claro, muitos artigos para turistas.

Saboreei um copo de sumo numa loja da especialidade que frequentei no passado. Continuavam excelentes. As pessoas ocupavam as praças e ruas num misto composto por locais, gente da cidade e uns poucos visitantes ocidentais.

As igrejas estavam abertas, ouvia-se missa no exterior. As crianças brincavam, à solta, numa sociedade que ainda deixa os seus meninos crescer com naturalidade.

O cansaço de um dia cheio a juntar ao baralhamento do jetlag ditaram o retiro para o quarto. O ruído da rua incomodou um pouco durante a noite mas nada de insuportável.

 

 

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