20 de Maio

Acordar às quatro da matina para apanhar um avião não é pêra doce, mas depois de duas semanas de caminhada quase incessante e algumas noites mal dormidas, o caso é ainda mais grave. Acordo o Miroslav. Estou ansioso. Não posso perder este vôo. Não posso. Tenho que sair de Kiev e, para além disso, paguei o bilhete a preço de ouro. E tenho receio que algo corra mal com o transporte para o aeroporto. Naturalmente que aquelas horas não existem ligações regulares. Terá que ser de táxi. O Miro liga para uma das companhias que tem na sua agenda telefónica. Passam-se minutos até receber a resposta. Não têm nenhum carro disponível. A situação repete-se com a próxima empresa. Bom, diz ele, vamos então ter um táxi um pouco mais caro. E… sucesso. Dentro de 10 minutos. E a corrida vai custar 5 Eur. Em Kiev, sabe-se o valor do serviço à partida, com base na quilometragem calculada entre pontos.

O Miroslav acompanha-me à rua, de roupão. No seu inglês engraçado diz que se sente um exibicionista. Por baixo, está em pelo. O telefone toca. É o taxista a dizer que está atrasado porque foi parado pela polícia. E o nível de stress aumenta. Finalmente, no limite do tempo razoável para chegar ao aeroporto dentro do esperado, chega o carro. Alívio. A viagem corre célere. Aquela hora não há trânsito e a distância é mais curta do que pensava. Em doze minutos estamos lá, pago, e respiro fundo. As coisas estão a correr bem.

O aeroporto secundário de Kiev, ironicamente dentro da cidade (enquanto Borispol, o principal, está a uns bons 30 km) é digno de nota. Sinto-me numa viagem do tempo. Vem-me à memória o filme Casablanca, quando Bogart e Ingrid Bergman se aprestam para embarcar. Zhuliany é mesmo assim. Um aérodromo com um pequeno edíficio de outros tempos a fingir-se terminal. Quando se entra, há dois postos de check-in, indicados por uma das poucas setas que mostram direcções aos passageiros. Outra, diz “WC” e a última aponta a direcção da cafetaria.  Se em Vilnius sorri com a sensação de estação de caminhos de ferro que o aeroporto local transmite, aqui o cenário assemelha-se mais com uma estação de autocarros provincial. O controle de bagagens processa-se num só tapete, e, vê-se claramente, de forma simbólica, para satisfazer os organismos competentes. Ninguém verifica dimensões e peso da bagagem. E no meio de tudo isto, um toque surreal: existe wi-fi gratuita para todos!


O avião sai a horas e, depois de um vôo muito tranquilo, aterro na Crimeia, no aeroporto de Simferapol. Estivémos uma hora no ar. De comboio o percurso leva 17 horas. Mas custa 12 Euros. Simferopol é ainda mais básico. Basicamente é como se não houvesse um terminal. O autocarro rola durante 200 metros e deixa-nos num espaço coberto por um toldo onde a bagagem de porão chegará em breve. Eu ando 10 metros e passo o portão do gradeamento e estou na rua. Logo as hienas locais me saltam em cima propondo todo o tipo de transportes e destinos. Um truque em voga em Simferopol é propôr um preço para a estação central, que até não é nada mau. Mas quando chega lá as coisas são esclarecidas: o valor era por quilómetro, “claro”. E a brincadeira sai cara, chegando aos 80 Eur por 10 Km.

Comigo não há espaço para essas tretas. Encontrei o mini-bus correcto e segui caminho. O bilhete custou 20 cêntimos. Está uma manhã agradável. São sete horas mas já é pleno dia, com muita gente nas suas vidas habituais. A moral está em cima com o sucesso da viagem. A estação é uma Babilónia de passageiros. Simferopol é talvez o centro nevrálgico dos transportes na Crimeia, e muita gente circula, trabalhando com as ligações entre cidades. Espero na fila a minha vez para comprar bilhete para o autocarro para Sevastopol e mais uma vez a coisa decorre sem problemas. Mais 2 Eur. Encontro a viatura certa e pouco depois estamos em marcha.

Divirto-me a observar tudo o que me passa pela janela e a viagem corre num instante. Já estou a chegar ao meu destino e mando um SMS ao meu anfitrião, Nick. São nove horas e suspeito que ainda está a dormir. Sem problemas. Com a ajuda do GPS encontro a localização de um McDonalds e vou caminhando para lá. Na Ucrânia existem McDonalds por todo o lado. Noutros países fujo deles com vigor, mas aqui são convenientes. Baratos, de boa qualidade e com Internet. Uma refeição completa sai por 3,30 Eur.

Passado um bocado o Nick telefona-me e 10 minutos depois encontramo-nos. Vou dividir o quarto com ele e com um jovem viajante russo que está no início de uma viagem de quase dois anos que o levará até às Filipinas, e depois de volta, basicamente à boleia.

Largo a mochila e instalo os tarecos, e logo a seguir saimos juntos. O Nick tem carro. Excelente. Vamos a Balaklava, esse local mítico, cenário da famosa carga da brigada ligeira no decorrer da Guerra da Crimeia, e, mais tarde, base militar soviética, com uma instalação ultra-secreta para submarinos, hoje tranformada em museu que vamos visitar.

Ele indica-me a localização exacta da batalha histórica, lá em baixo, num terreno plano, característico campo de guerra de outros tempos. O bilhete para o museu custa 4 Eur, e é porque me faço passar por Ucraniano. Mas é uma visita guiada, que para mim é chinês. O grupo percorre cerca de 1 km nos subterrâneos da base antes secreta, toda a gente atenta às explicações do cicerone, enquanto me concentro nos detalhes e na fotografia.

Terminada a visita começa a chover. Damos uma vista de olhos a um hospital militar abandonado, não muito longe dali. Depois, uma breve passeada na baia de Balaklava, uma marina turística, à escala local. A chuva, miudinha mas persistente, continua a cair. A seguir o Nick leva-nos a um local que foi ainda mais secreto, e que mesmo nos dias de hoje é desconhecido de quase toda a gente. Um centro de comando de contingência, em caso de guerra nuclear, que se encontra escavado numa montanha. São quilómetros de túneis, dos quais exploramos uma boa extensão. Foi complicado de lá chegar. Ele nunca lá tinha ido e seguiu indicações de amigos familiarizados com o local. Em determinado local tivemos que deixar o carro, que a estrada estava bloqueada, e os últimos quilómetros, monte acima, foram feitos a pé e sob chuva. Mas valeu a pena.

No caminho de regresso parámos ainda no local comemorativo da batalha contra os alemães, durante a Segunda Guerra Mundial, que actualmente tem uma boa colecção de material bélico em exposição, e que oferece uma boa vista sobro vale onde a acção decorreu.


O dia aproximava-se do fim. Todos os três tinhamos fome e fomos a um restaurante simpático, junto ao terminal de ferry de Sevastopol. Comi um “borsch” e uma fatia de bolo de chocolate fenomenal, acompanhados por uma bela cerveja, por 3 Euros. Soube mesmo bem. Depois fomos ao supermercado comprar ingredientes para preparar sangria, um segredo que apenas eu conhecia.

O Nick estava em pulgas para sair ao serão, mas tive que recusar. Estava cansado de mais depois de dias da caminhadas exaustivas e de um dia iniciado às 4 da manhã. Pensava descansar e dormir cedo, mas a bebida e a conversa prolongaram-se até à 1. Lá se foi a minha planeada recuperação.

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