Nota: este artigo não é patrocinado por nenhuma marca. Escrevi-o só porque sim, por convicção e tédio, num bar de praia de uma ilha nas Filipinas.

 

Estas são as minhas Havaianas. Há por aí quem diga que são uns chinelos, uns flip-flops, mas quando as coisas vão por ai tenho que intervir. Não, as Havaianas são havaianas. Chinelos há muitos. Flip-Flops, idem. Produzem-se em fábricas obscuras com materiais e considerações de qualidade mais duvidosas do que duvidosas. Aos milhões. Existem por todo o lado, mercados de aldeia no Cambodja, hipermercados em Málaga, lojas de aldeia nos Andes. Mas as Havaianas são outra coisa e como tenho esta relação de amor com elas, senti-me na obrigação de escrever um pouco sobre elas. Sobre estas em particular, que tenho nos pés, sobre a areia de uma praia nas Filipinas – Port Barton, para quem quiser saber. Não são as minhas primeiras e, de certa forma, espero não serem as últimas.

Estas Havaianas entraram na minha vida num dia de Janeiro. Deveria dizer “num dia frio de Janeiro”, mas não o posso fazer, porque no Dubai não há dias frios. Mas há dias dificeis, e era o que eu estava a ter. Tinha chegado há quarenta e oito horase a esta primeira etapa de uma viagem de três meses pela Ásia. Com umas botas Quechua nos pés. Resta esclarecer que calor e, já agora, frio, são coisas que os meus pés não conhecem. Parece que da cintura para baixo, sou insensível à temperatura. E sublinho, para evitar piadas baratas: “à temperatura”. Por isso a ideia de andar noventa dias pelas terras do Omã, do Sri Lanka, da Malásia, do Brunei, de Singapura, da Indonésia e de Timor-Leste com umas botas nos pés, parecia-me boa. Protecção dos ossinhos, calçado sólido, todo-o-terreno. Isto seria se estas malvadas botas não me estivesse a levar à loucura: rijas, pesadas, a criarem-me bolhas e todo o tipo de mal-estar que se pode sentir nos pés.

E debatia-me eu com estes problemas quando num famoso shopping do Dubai dou de caras com uma loja Havaianas. Isso mesmo. Só Havaianas, para todo o gosto e… todas em promoção! !Querem ver… mas vocês querem ver… e lá compro eu as minhas Havaianas, as melhores do mundo, as minhas mais que tudo. Custaram, se a memória não me falha, 16 Euros.

Sentei-me logo num muro para tirar as malditas botas e colocar as recém-chegadas. Talvez porque os incómodos nos pés me estavam a pôr com um humor de cão embirrei logo com as Havaianas, coitadinhas. Eram pesadas, dizia eu. E eram. Mas isso faz parte da magia.

Pesadas ou não, eram bem melhores que a porcaria das botas Quechua. E ao fim de uns dias isso do peso já não se sentia. O que sentia era o conforto lá em baixo, nas patinhas.  

E assim foi que durante uns noventa dias estas Havaianas me acompanharam por todo o lado. Acamparam nos desertos do Omã e no mesmo país calcorrearam vielas de cidades abandonadas, subiram ao topo de dunas e logo se viram no Sri Lanka. Ali percorreram a ilha de lés a lés, viram elefantes selvagens a curta distância, pisaram as areias da praia de Trincomalee, em território Tamil, subiram e desceram os degraus de muitos autocarros loucos, fizeram quilómetros por aldeias e templos budistas.

Entraram em magníficos vestígios do passado em Bagan, no misterioso Myanmar. Viajaram por rio e por terra, esperaram pacientemente por mim enquanto recuperei de uma intoxicação alimentar.

Depois, viram-se na Malásia, onde se despediram de um dos meus queridos dentes, perdido na cadeira de tortura de uma qualquer dentista de Kuala Lumpur.

Durante vários dias calcorrearam as ruas de Singapura, fizeram uma breve expedição ao Brunei e viram-se na Indonésia. Foi aí que me deixaram ficar mal. Uma única vez. Nos arrozais de Lombok, onde a lama as tornou nervosas e traiçoeiras, ao ponto de ter que as levar na mão. Depois fizemos as pazes. Estiveram junto a mim nos dias dificeis em que uma segunda intoxicação alimentar me deixou por terra.

Atravessaram Timor, de Oeste para Leste, não uma mas duas vezes. Ouviram-me conversar com testemunhos vivos da presença portuguesa naquelas terras, observaram, creio, com o mesmo fascínio que eu, os traços que nos antípodas o meu povo deixou, edifícios de outros tempos, comidas e hábitos.

Acabámos por regressar juntos de tanta aventura mas em casa o frio separou-me delas. Repousaram no fundo de um armário durante um par de meses, até que um dia o tempo lá fora lembrou-me das minhas Havaianas. Resgatei-as e ficámos juntos o Verão todo. Muitas idas e vindas, especialmente memoráveis os fins de tarde junto ao mar, a forma desenvecilhada como saltavam do travão para o acelarador do meu Suzuki Samurai de cabelo ao vento, ajudando-me a ir de casa para a praia.

Os dias foram ficando mais curtos e de repente já não havia Verão. Desta vez, porém, surpreendi-as quando as retirei do armário pouco tempo depois e lhes disse: -“Queridas Havaianas, vamos até África”. E fomos. Guiné-Bissau, Gâmbia, Senegal. Muita aventura vivemos juntos, aquilo é que foi uma galhofa. A vida não foi fácil, mas os dias eram enriquecedores. Deixei-as dormir em locais que não ouso descrever. Conhecemos pessoas, saímos juntos à noite e como sempre, no fim, levaram-me em segurança até ao que naqueles dias chamava de casa depois de mais um serão bem bebido.

Agora estamos aqui. Como disse, nas Filipinas. Houve ali um período de repouso, enquanto passava o Natal com a família e chorava uma perda chegada. Mas partimos juntos, outra vez. E sei que o vamos continuar a fazer. Um dia as minhas Havaianas vão ficar doentes ou talvez morram subitamente. Ou quem sabe, ao acordar, não as encontre. Levadas por qualquer filibusteiro do mundo. Quando esse dia chegar, feito o luto, terei que encontrar outras… Havaianas.

8 COMENTÁRIOS

  1. Tchi já vi que tens pés de cinderela. umas havaianas não duram mais de 2 meses de viagem nos meus pés… excelente relato, adorei ler. quando fores a marrocos ofereço-te umas sandálias de homem, aquelas que os marroquinos usam no hammam. isso sim… e nos teus pés duram-te mais 50 anos.

    • Pois os meus pés merecem o melhor, mas o melhor não é, nem de perto nem de longe, um par de havaianas*1. Chinelos de dedo acho muito práticos apesar de terem tudo para dar cabo dos pés, quer sejam havaianas de 20 euros ou o equivalente made in asia de 2 euros. Apesar disso, tenho sempre um par comigo. Uso-as quando não preciso de andar muito: no avião, nos quartos de hotel, na praia e sempre que o calor aperte e torne dificil a meia ou o sapato fechado! Quando preciso de andar a serio, ai meto os chinelos na mochila e calço umas sandálias simples mas muito fiáveis como estas minhas Teva*2 Terra Fi Light que têm resistido muito apesar de já terem ficado semi-abertas na sola depois da subida à Ciudad Perdida na Colombia. De regresso a Bogotá cozi-as por 50 centimos do Euro e estão como novas.

      *1 O hype das havaianas faz-me lembrar a estranha moda das socas de plastico, caras, feias e desajeitadas da Crocs, que parece que já passou! Mas lá está, opiniões cada um tem a sua, e até sou amigo de tipos que usam essas horriveis socas!

      *2 Teva: do hebraico “Natureza”. O inventor era Israelita.

      • Eu coloquei o preço das Havaianas no Brasil mas, na verdade, nunca usei uma. Em casa uso chinelos de couro e, no verão, uso sandálias de couro que me permitem dirigir veículos, o que não posso fazer de chinelos.

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