Dia 9 de Março de 2020, Segunda-feira

Segundo dia inteiro em Buenos Aires. Lá fora, vejo pela janela, o céu está azul. É uma boa surpresa. Tinha chegado à capital argentina algo angustiado: depois de tanta expectativa a previsão meteorológica era cinzenta. Até de forma literal. Prometia-me dias sem fim de céu totalmente coberto e chuva abundante.

Comi a minha aveia com leite em pó em casa e saí para a rua. Sentia-me bem, pronto para palmilhar gulosamente dezenas de quilómetros e foi mesmo isso que sucedeu ao longo do dia.

Tal como na véspera o tempo não estava nada mau, ao contrário do que apontavam as previsões meteorológicas. Caminhei pela rua principal de San Telmo que, se seguida até ao fim, desemboca na Plaza de Mayo.

Encontrei o famoso banco da Mafalda, essa personagem de banda desenhada que teve grande sucesso nos anos 70. Foi criada por Quino, um artista porteño. Aqui existe um trilho da banda desenhada, que sendo seguido levará uma pessoa por uma série de esculturas alusivas a várias personagens do mundo dos cartoons. Infelizmente não o fiz, porque só descobri a sua existência demasiado tarde, quando já não tinha tempo. Fiquei-me assim pelo banco da Mafalda.

Mais à frente, numa esquina, encontrei a sede paroquial de San Telmo, uma igreja que tem no seu recinto frontal o mausoléu do General Belgrano, grande heróis da guerra da independência da Argentina a uma das figuras históricas mais queridas da nação.

Na realidade o mausoléu parecia-se mais com um monumento. Perguntei a uma senhora que trabalhava na igreja que me confirmou que o general tinha sido enterrado “debaixo dessa trampa toda”, referindo-se ao que tomei por um monumento.


Fui ter à Plaza de Mayo onde aproveitei para tirar mais fotografias, hoje com um céu azul que fazia toda a diferença em relação a ontem. É cedo, não há muita gente por ali. Alguns dirigem-se para o trabalho. Uma série de homens transportam uma enorme faixa que diz “Fora com o pagamento da dívida externa”. Um adereço para a manifestação do dia. Mais tarde.

Da praça subo a Avenida de Mayo, uma das muitas longas artérias do vasto centro da capital argentina. Fervilha com vida. Os passeios estão cheios de gente que se dirige a algum lado, ao longo do passeio encontro uma série de estações de metro que se estendem na extensão da avenida. A arquitectura é fascinante. Tudo é fascinante.

Encontro o Café Tortoni, o mais clássico dos clássicos cafés de Buenos Aires. Sento-me a uma mesa, encomenda um café com leite. Existem alguns turistas, não em número suficiente para destruir a natureza deste café. Fascinante.


Depois de um bocado saio e prossigo o passeio. Vou encontrar mais à frente outro café histórico, recentemente renovado, mas mantendo a traça original. É o Los 36 Billares, porque, sim, tinha (e tem) 36 mesas de bilhar. Entro, desço à cave, onde estão a maioria dessas mesas. Uma delas está a ser usada, num clima intimista, como se o gerente da casa estivesse a bater umas bolas com uns amigos. Dão por mim e olham-me com ar interrogativo. Pergunto se posso ver e tirar umas fotos. Posso.

No início da Praça do Congresso vejo dois turistas fascinados com algo. Quando se afastam aproximo-me. De facto… só em Buenos Aires um tipo vai a andar ao acaso pela rua e dá de caras com uma das cópias originais de O Pensador, de Rodin.

Ali perto uma mulher levou a sua espreguiçadeira para o parque e apanha sol com um snack disposto numa mesinha ao lado, enquanto trata dos seus assuntos ao telefone. Lá ao longe vê-se o edifício do congresso, mas está em renovação, coberto de andaimes. Ainda é longe e teria que voltar, decido não ir até lá.

Continuo a ver os edifícios que por aqui existem. Interessantes. E sem um fim à vista. Estou apaixonado por Buenos Aires. E daqueles medos referentes à segurança não resta nada. Tinham-me até dito que só de tirar o telemóvel para uma fotografia, estava a brincar com a sorte. Nada disso. Em todos os dias que passei na cidade nunca vi nada suspeito. Certamente que terá vastas áreas urbanas mais complicadas, mas nas zonas com potencial interesse para um visitante, não é de esperar problemas.

Passo por uma avenida onde se concentram teatros. Há muitos, com as suas vistosas bandas a anunciar as peças em cena. E há também imenso comércio. Entro numa livraria. Surpreendentemente, para uma cidade com uma intensa actividade cultural e um vasto mercado como é Buenos Aires, não existem livros sobre a cidade, a sua história, os seus roteiros. Fiquei ainda mais espantado porque o livro que estou a ler, sobre o desenvolvimento urbano de Buenos Aires, refere que existem inúmeras publicações assim. O livreiro diz-me o contrário. Lá saio com um guia muito ilustrado da cidade, muito antigo e muito barato.

Dou com o famoso e monumental obelisco, talvez a mais famosa imagem de marca da cidade. Fica num dos mais movimentados cruzamentos da Avenida 9 de Julho, que por seu lado é uma das avenidas mais largas do mundo. Corrijo: é a mais larga do mundo.

Admiro o imenso monumento e o fervilhante formigueiro humano que se perde de vista no horizonte desde uma plataforma de observação colocada sobre um edifício da polícia municipal.


Continuo o passeio, encontrando uma bonita praça rodeada de edifícios clássicos de elaborada arquitectura. No parque ali existente descubro uma árvore histórica, com um tronco que revela a idade feita de muitos séculos do exemplar. Estou na Plaza Lavalle e em breve chegarei ao Teatro Colón.

Ao virar da esquina encontro o monumental teatro, o grande espaço cultural da antiga Buenos Aires, construído e reconstruído e hoje um dos pontos de maior interesse para os visitantes da cidade.

Entusiasmo-me quando vejo um cartaz que anuncio visitas guiadas, mas logo o interesse arrefece, ao ver que a longa fila que ali existia não era para comprar bilhetes para um qualquer espectáculo mas precisamente para as visitas.

Sento-me no exterior, confesso, a descansar um bocado. Ainda estamos na hora do almoço e já levo mais de uma dezenas de quilómetros nas pernas. Os dias de Buenos Aires foram quase todos de muita caminhada. E se não o foram mais, devo-o aos preços e eficiência da Uber.

Agora que repousei um pouco posso continuar a exploração da cidade. Vou agora à rua Florida, o ícone comercial de Buenos Aires. É a sua principal rua pedonal e aqui se encontram representadas as mais afamadas marcas. É também o local onde se troca facilmente dinheiro no mercado negro. No seu segmento final existem homens (e também mulheres, mas poucas) que balbuciam… “cambio… cambio”. É perguntar quanto estão a oferecer e procurar o melhor negócio. Existem alguns truques mas nenhum especialmente mau para o incauto turistas. O que sucede muitas vezes é prometerem um valor melhor, para cativar, e depois, quando nos levam ao escritório (porque a transacção não é feita na rua) afinal o valor é diferente. Pode-se recusar simplesmente.

Troquei algum dinheiro assim. O valor é quase o dobro do que se obtém numa casa de câmbios autorizado e torna tudo muito mais barato. Buenos Aires é uma cidade baratíssima para nós.

Foi também na Florida que encontrei uma livraria muito especial: há muitos anos que procurava um livro com memórias da Guerra das Malvinas na perspectiva de um piloto da Força Aérea Argentina. Online, não encontrei nada. Antes de viajar tinha perguntado a um amigo de Buenos Aires, que perguntou a amigos que indicaram este local. E foi um sucesso! Encontrei exactamente o que procurava ou melhor ainda. Comprei um livro de colectânea de memórias que me deixou bastante satisfeito!

No final da rua Florida encontra-se um amplo parque chamado Plaza San Martin. Atravessei-a. Descendo do outro lado cheguei ao principal monumento de homenagem aos mortos da Guerra das Malvinas, que inclui a lista com os seus nomes, uma chama eterna e uma guarda de honra vestida a rigor.

Dali vejo também a Torre dos Ingleses, no meio de um outro parque. Em Buenos Aires existe algo de interessante ao virar de cada esquina. É mesmo uma cidade cheia de surpresas.

Passo junto a Retiro, o principal hub de transportes da cidade e do país. Ali existem duas estações ferroviárias, uma estação de metro, uma estação rodoviária e inúmeras paragens de autocarros.

É também uma área a evitar depois da chegada da noite. Mesmo encostado a estas estações existe um bairro pobre e com elevados níveis de crime. Durante o dia, OK.

Caminho agora numa larga avenida e vou um bocado apreensivo porque não se vê ninguém. Sinto-me um alvo fácil, mas não acontece nada. Chego ao Museu Ferroviário que quero visitar. A entrada é gratuita e a exposição é muito interessante. Fico contudo decepcionado por não existir (ou eu não ter encontrado) uma área com material circulante.

Terminada a visita começo a subir, entro num bairro mais moderno mas também charmoso. Aqui, vive-se bem. Sente-se isso. Há uma sobreposição geracional nos edifícios. Vêem-se palacetes clássicos lado a lado com prédios de fachadas envidraçadas. É interessante.

Vejo um homem que passeia cães. Não os dele, espero, mas os dos seus clientes. Algo que só tinha visto em filmes, uma situação associada no meu imaginário a Manhattan ou algo assim. Em Buenos Aires encontrarei algo assim por duas vezes.

Encontro ao caso o Mosteiro de Santa Catalina. Um complexo religioso convertido em centro cultural, com um espaço reservado mas aberto ao público, onde as pessoas param um pouco para se encontrar com alguém, namorar, conversar ou simplesmente descansar. Há um café, espaços para exposições. Ao lado, a igreja ainda está activa enquanto templo católico.

O cansaço começa a pesar. A tarde ainda vai a meio mas não aguento muito mais. Está na hora de começar a caminhar em direcção a casa. Tento ainda visitar o Museu Mitre, na casa onde viveu essa importante figura histórica da Argentina e a única a sobreviver à modernização da zona que a envolve. Está fechado. É dia de encerramento.


Volto a passar na Plaza de Mayo, já cheia de gente que se prepara para mais uma manifestação. Estar ali é sinal que a “minha” casa já não está longe. Bem, ainda são mais 2 km, mas isso não é nada.

Entretanto o dia escureceu. Lá em cima o céu tornou-se cinzento. Do alegre azul da manhã já só resta a memória. Pressinto chuva. Estará na hora de apressar o passo.

Chego. Tiro as botas, relaxo, aprecio os livros que comprei. Os meus amigos gatos juntam-se-me. São 17:30 e até às 20:00 deixou-me estar a descansar. Só mais tarde, quando a fome aperta, saio em busca de uma refeição.

Acabo por escolher o Il Nono Bachicha, um restaurante muito bonito com ar local. Tinha lido as reviews e eram más, mas não resisti. Arrependi-me. A comida era de facto má. Simplesmente quem trabalhava na cozinha não tinha vocação, só isso. O bife não sabia a nada, o molho não sabia a nada, e as batatas com molho de natas que o acompanhavam a nada sabiam.

Mas fiquei de estômago saciado e pronto para me recolher e recuperar dos 20 e tal quilómetros caminhados ao longo do dia. Mais uma vez, dormi muito bem.

 

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