Depois do pico da jornada anterior, uma contracurva neste dia horribilis. Até começou bem, com um pequeno-almoço de despedida saboroso. Lá fora estava agradável, céu azul, temperatura amena. Caminhei até à estrada principal e em menos de nada estava na caixa traseira de um Tap-Tap para Cap Haitien.

Uma menina não reprime uma gargalhada quando coloco a máscara. Até um pouco estranho porque apesar de raras as máscaras sempre se vão vendo por estas paragens. Tenho um breve e improvisado diálogo em francês (língua que não falo) com um senhor que diz que no Haiti não há COVID.

Ia um bocado angustiado porque não sabia ao certo onde encontraria o transporte para a fronteira, mas afinal foi só atravessar a estrada e logo ouvi o chamamento para Ouanaminthe.

Não demorou muito à carrinha estar cheia e iniciar a marcha para oeste. Ia bem, um bocado apertado mas satisfeito com a facilidade com que as coisas se resolveram.

Em determinado momento pensei no meu passaporte. Fui por ele, não encontrei onde  o pensava ter colocado, mas como estou sempre a mudá-lo de lugar e a fazer confusão não me preocupei muito. Deveria estar noutro lugar. Mas, confesso, ocorreu-me sair no Carrefour La Mort e voltar já a Milot. Optei contudo por prosseguir. Quando chegasse ao destino logo procuraria e se necessário esvaziaria a mochila.

Dali para a frente já não ia tão satisfeito. A semente da dúvida germinava. E as consequências do pior cenário seria devastadoras.

Lá parámos na estação de transportes de Ounaminthe, logo rodeado de gente que me queria levar para a fronteira, mas disse-lhes que estava preocupado porque não encontrava o passaporte e logo uma onda de respeito se espalhou por aqueles homens, como se contemplassem o cordeiro a caminho do sacrifício. Encontrei um canto sossegado, esvaziei a mochila, tudo cá para fora, peça por peça e…. nada de passaporte. O meu coração falhou um batimento, respirei fundo, evitei pensar nas consequências e foquei-me na última esperança, ténue, a do documento ter ficado no hotel em Milot.

Agora havia que refazer os passos até ao ponto de origem. Logo me quiseram levar de mota para o ponto de partida dos Tap-Tap, mais junto à fronteira. Declinei. E dali, não havia transporte? Lá me indicaram uma carripana velha. Aquela iria para Cap Haitiene. Quanto? 300. OK, é o normal.

Seguiu-se o drama habitual. Carrega e descarrega, chegam pessoas, discussões. No Haiti as pessoas estão sempre zangadas. Há um ambiente tenso em permanência. Bem, lá vamos. Agora sim começo a pensar… sem passaporte… nem posso pesquisar soluções, no Haiti não tenho dados no telefone. Embaixada não há. Há um cônsul, na capital. E outro cônsul na República Dominicana.

Depois de quase uma hora de angústia, chegamos ao ponto onde se apanham os transportes para Milot e o motorista extorque-me 200 HTG. Sem mais nem menos, sem pretexto… diz apenas que são 600 HTG e mais nada. É grande e mal encarado. Como resisto reduz para 500 HTG. E 500 paguei, sem hipótese, num país sem lei.

OK, passa logo um Tap-Tap para Milot. Desta vez nem consigo apreciar a beleza deste percurso. Pelo menos no hotel sinto-me entre amigos, posso ficar ali, aconselhar-me com o Erick, usar Internet.

Mas não será necessário. Entro no café do hotel e digo… “perdi o meu passaporte…” e uma menina de cara bonita e invulgarmente simpática para o Haiti interrompe-me… “I knowwwww”. E entrega-me um envelope com o bem mais precioso que naquele momento tenho na vida. Que felicidade!

Bebo uma bebida. Descomprimo. E logo inicio o caminho de regresso.  É preciso ter em conta que a fronteira fecha às 17:00.

Lá apanho de novo um Tap-Tap para a cidade, está lá um mini-bus, algo diferente do que já me habituei, de saída para a fronteira. Tenho tempo. Estou de novo satisfeito. Sento-me confortavelmente junto à janela. São 14:00. Mesmo que demore um pouco a encher, será uma hora de caminho, estou tranquilo.

Mas aos poucos essas tranquilidade esvai-se. Aquilo é horrível. A viatura enche-se e torna-se a encher. Em cada fila, para quatro pessoas, já vão sete. E depois enche-se o espaço junto ao condutor. Já há pessoas de pé.  Está tão cheio que nem uma pulga cabe e mesmo assim não anda. Não se passa nada. Mesmo os locais começam a ficar irritados com a situação. Depois de alguns ameaços o condutor lá põe aquilo em andamento. Para parar pouco depois para atestar de combustível.

Já vi que não vou ter tempo. Quando chego ao cruzamento para Milot peço para parar, em francês. Mas uma série de pessoas diz-me que não vale a pena, a fronteira ainda estará aberta. Um tipo assegura-me que é possível passar. E torno-me a sentar. Quero é sair daquele país!

A minha intervenção levou a um acesso debate colectivo sobre ninguém falar creoulo (no caso, eu), e eles terem que falar espanhol quando vão ao país vizinho. Claramente pensam que sou dominicano.

Chegamos ao destino, o tal tipo pede-me logo dinheiro para a moto, e para deixar pago o transporte para ele regressar. OK, não é muito, cheira-me a esturro mas são trocos, vale o risco.

E claro que correu mal. Pela fronteira haitiana foi só passar. Mas ao cruzar o portão dominicano pedem-me o passaporte. Se fosse nacional, não teria problema, mas sendo estrangeiro as coisas não são tão simples.

Quem me interceptou foi o mesmo rapaz com que falei sobre o Cristiano Ronaldo dois dias antes, quando fazia o caminho no sentido oposto. Tenho a certeza de que ele ia fechar os olhos e deixar-me passar, mas aproxima-se um guarda armado, de camuflado, e acho que o ouvi murmurar “pronto, já vem aí”. Como quem diz, agora não há nada a fazer.

O guarda é seu superior na hierarquia funcional da fronteira. Não era antipático, mas sim profissional e firme. Não podia entrar e pronto. O rapaz insiste, diz-me para lhe oferecer, ao guarda armado, qualquer coisa, para me entender com ele, mas logo a seguir diz que não, que não vai dar. Devem ter comunicado com os olhos, eu esto de costas neste momento, não vejo o outro.

A última tentativa foi muito simpática: mandou um whatsapp ao chefe de turno da fronteira a pedir para abrir uma excepção. Mostrou-me o screen, a resposta está lá: “nooo”.

E agora, o que fazer, estou um bocado desesperado, não faço ideia de como vou passar a noite. Já não há transportes para Cap Haitiene, e de qualquer forma o meu dinheiro está a chegar ao fim.

O uniformizado diz-me que tenho mesmo que sair dali e vejo o cano da M-16 a acenar para mim. Parece que tem que ser. Felizmente tem um gesto simpático, chama um motoboy e diz-lhe com ar igualmente autoritário para me levar a um hotel de confiança.

O meu quarto em Ouanaminthe
E o corredor…

E assim foi. Uma corrida rápida de mota. Entramos no hotel. Pago o quarto. 12 USD. Pago ao rapaz da mota, simpático e honesto. E fico no meu quarto em Ouanaminthe. O pior já passou. Claro que é um quarto muito mau numa casa muito má, mas já fiquei em lugares piores. Compro duas garrafas de água geladinha na recepção e até há wi-fi a funcionar bem. Pensei em sair para comer, mas fiquei-me pelos parcos abastecimentos que levava comigo. Queria era relaxar.

Acabei por dormir bem, apesar de ter alguns sentidos alerta. Na minha mente podia haver concluios, abrirem a porta a meio da noite para roubar, sei lá, mas eram apenas fantasmas. O hotel era humilde mas as pessoas pareciam-me simpáticas e honestas. Mais tarde descobri que o crime em Ouanaminthe vai do muito pouco ao inexistente. Uf! Que dia!

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