Quase para o fim ficou um dos planos mais aguardados, a expedição através de Santiago até à localidade do Tarrafal, no extremo oposto da ilha. Foi adiado sucessivamente e agora teria mesmo que ser, considerando a aproximação do dia da partida.

Para aproveitar bem o dia e sabendo que o trajecto demora cerca de duas horas saímos de casa bem cedinho, pouco depois da sete da manhã. Foi uma decisão inglória. Chegando à beira do mercado da Sucupira, de onde saem os “alugueres” para o Tarrafal, em vez da habitual concentração de viaturas e da abordagem frequente por parte dos condutores… nada. Foi preciso chegar bem lá ao fim para encontrar uma carrinha que iria para aqueles lados.

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O problema veio depois. Eu sei que aquele tipo de transporte só arranca quando está basicamente cheio e que é preciso esperar um bocado até isso suceder. Mas desta vez foi uma seca descomunal. Para cima de uma hora, diria mesmo, quase duas horas, ali à espera, a maioria do tempo dentro da carrinha.

O mercado foi-se compondo, cada vez mais pessoas andavam por ali, mas para a nossa carrinha, quase ninguém. Lá fomos vendo a “tripulação” reforçada, mas para encher aquilo ainda é preciso um par de mãos cheias de gente. E nem dava para entreter muito observando as redondezas. Ao fim de um bocado estavam as vistas esgotadas. Ia vendo os porquitos que se tentavam evadir dos alguidares onde estava amarrados e fora isso, nada.

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Mas tudo tem um fim, e muito tempo depois de lá termos chegado, já com uma sensação de meio da manhã, lá conseguimos ir. E era a primeira carrinha do dia! A mim pareceu-me estranho.

Arriscaria a dizer que o melhor da viagem ao Tarrafal foi mesmo… a viagem. Parte daquelas estradas já não eram estranhas. Tinhamos passado por lá quando fomos a Pedra Badejo. Mas a partir de certo momento tudo se tornou novo. A paisagem é deslumbrante, com altos picos de encostas cobertas de um verde tão intenso que dir-se-ia ter sido ali derramada uma lata gigante de tinta. Passamos por aldeias e lugares e em todas essas localidades vimos casas de outras épocas, edificações construídas por portugueses cheios de sonhos para as suas vidas, transportando para aquele pedaço de África um pouco do nosso país.

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À passagem da Assomada, que creio ser a segunda maior localidade da ilha e uma das maiores do país, há uma agitação à beira da estrada. O conduto pára a carrinha, curioso e toda a gente menos eu vai espreitar. Passado um bocado regressam com as novidades: foi encontrado morto um homem ali para baixo. Quando nos preparamos para arrancar eleva-se um som arrepiante, o das carpideiras, um coro de morte, um sussurro que encheu o ar. Mais tarde, ao serão, o caso é reportado na televisão nacional. Não se sabe ao certo o que se passou, cada entrevistado com uma tese distinta, mas na maioria o assassinato era prevalente.

Pelo caminho fizemos amizade com um jovem que viajava conosco. Era de Santo Antão, de Porto Novo, tinha estudado no Mindelo e agora era professor de inglês no liceu no Tarrafal. Sugeriu-nos que passássemos a noite por lá, até porque os últimos transportes de regresso à Praia arrancavam cedo, por volta das quatro. Recomendou-nos vivamente a pernoita, indicou-nos uma pensão muito aceitável e com preços jeitosos onde ele próprio tinha vivido nos primeiros dias do ano lectivo, antes de arranjar a sua casa. Fomos conversando, até trocámos números de telefone, para o caso de decidirmos fica para o dia seguinte podermos combinar beber qualquer coisa juntos ao serão.

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Tínhamos pedido ao condutor para nos deixar antes da localidade, junto ao famoso campo de concentração do Tarrafal, construído nos anos 30 para albergar prisioneiros políticos portugueses, especialmente membros do Partido Comunista. Foi encerrado nos anos 50 devido à pressão da comunidade internacional e reaberto uns anos mais tarde, dessa feita para receber presos africanos, intelectuais, membros dos movimentos independentistas. Não me vou alongar muito sobre este importante local, até porque deixo aqui ligações para quem quiser ler mais: Wikipedia em Português; Wikipedia em Inglês.

Dizia eu que era suposto a carrinha parar lá mas ia lançada, foi preciso o nosso amigo mandar um berro e logo saímos. Nós e um puto que pelo que entendi já tinha dito que nos ajudaria a encontrar aquilo. Sem interesse próprio, entenda-se, mas de qualquer modo nunca seria necessário. Não só tinha o local referenciado no meu GPS como de qualquer modo seria impossível não o ver de imediato.

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Pagámos os 500 Escudos ao condutor e passámos a porta de armas. Muitos nem repararão que é naquele momento que estão verdadeiramente a entrar no campo, seja porque não se paga ali nenhum bilhete seja porque as casas que se encontram logo a seguir estão ocupadas por uma comunidade local. Mas a verdade é que provavelmente seriam as habitações dos guardas e funcionários e encontram-se dentro de um perímetro exterior.

O bilhete para o campo é de apenas 100 Escudos, menos de 1 Euro. Pagamos e entramos. Lembro-me que visitar este local foi dos principais incentivos para a viagem a Cabo Verde. Há anos que queria aqui vir e valeu a espera. Como em Terezin, na República Checa, o local foi deixado no seu estado puro, com uma manutenção mínima. É uma espécie de urbex controlado, o ideal. Em dois pavilhões existem exposições, básicas nas peças históricas mas muito bem organizadas no que toca aos painéis informativos. Fica-se bem esclarecido sobre o Campo de Concentração do Tarrafal.

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Andavam por lá uns poucos turistas estrangeiros (dois casais), que alívio. E uma visita de estudo de alunos africanos. Andámos por lá com todo a calma, tirei carradas de fotos, esgotámos o sítio, e lá demos por terminada a visita.

A partir desse momento, duas opções: ou vamos a pé até à povoação ou apanhamos um transporte local, que, como vimos depois, estão sempre a passar. São aquelas carrinhas de caixa aberta, onde o pessoal se senta em bancos corridos. Não é por nada mas seguimos a pé, apetece caminhar, está um dia ótimo e não é assim tão longe.

Passamos junto ao complexo desportivo enquanto os transportes locais vão circulando. Quase todas as viaturas que passam são carrinhas destas, muitas delas com decorações que deixam bem claras as preferências futebolísticas dos condutores: Benfica ou FC Porto.

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O centro do Tarrafal não agradou especialmente. Descobrimos a praia. Muita actividade. Muitos barcos de pesca com imensa gente de volta deles nas tarefas usuais. Debaixo de umas árvores uma balança suspensa era usada para pesar enormes peixes, “monstros” de mais de 30 kg, que depois seguiam com os seus compradores para fora da zona. Se há algum ponto com algum interesse no Tarrafal é ali, onde pulsa a economia da comunidade.

Entretanto o calor apertava, precisava de me refrescar, de molhar a goela. Fomos a um restaurante simpático por onde tínhamos passado antes de chegar à praia. Foi um bocadinho agradável, aquele repouso à sombra com uma Creoula bem gelada. Na mesa ao lado uma senhora com alguma idade, claramente uma turista, escrevia os seus postais. Provavelmente estava ali hospedada. Também se alugavam quartos.

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De seguida regressámos à praia. Aquilo é como se fossem duas praias distintas… funcionalmente são, apesar de fisicamente se tratar apenas de uma. Existe a dos pescadores, onde se trabalha, e uma outra, para os turistas, onde se vai a banhos. Dizem que é a melhor praia da ilha. Talvez seja, mas para mim não é por uma praia que a cotação do Tarrafal sobe. Como escrevi anteriormente, esta localidade foi a grande desilusão desta viagem. Como toda a gente parece adorar aquilo não vou dizer que o melhor é manterem-se afastados, o problema deve estar em mim. Tirando a visita ao campo de concentração, foi um tempo perdido, podia tê-lo usado de outra forma, noutro local qualquer.

Não nos foi difícil despedir. Íamos caminhando para a estação rodoviária quando um “colectivo” em patrulha em busca de clientes nos apanhou. Simples. Demos mais umas voltas à procura dos passageiros que faltavam… este condutor estava disposto a espremer ao máximo a viagem e só quando estava tudo completamente cheio é que arrancámos em direcção à praia. Éramos dezoito.

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A viagem foi animada. Muita gente a sair, outros a entrar. Puxa daqui, empurra dali, muda sacos e bagagens. À chegada parecia ter demorado menos tempo do que à ida. Na realidade ambas as viagens duraram menos do que as duas horas estimadas.

Ainda era tempo de esticar um pouco as pernas pelo plateau da Praia. Parar para uma cerveja na minha esplanada favorita, e depois para mais uma na outra que também gosto, a do Café Sofia. Na realidade fui aprendendo a gostar deste café. À primeira vista antipatizei com os toldos brancos, mas de cada vez que lá fui diverti-me imenso a observar e a ouvir as pessoas que por ali estavam ou passavam. E no fim, na hora da despedida, sentia que se vivesse na cidade este seria o pouso para todos os dias.

Uma paragem no supermercado e a ida para casa. Ao serão fui ao Celebridades ver o Benfica perder na Luz com o Atlético de Madrid, na companhia de pessoal local e de umas imperiais deliciosas.

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