Etéreo: “Do mundo espiritual ou celestial; ligado ao que é do “além” ou não é terreno.”

 

Num país chamado Bolívia, bem para lá do Atlântico, encontra-se um lugar que será porventura o mais etéreo que neste planeta existe. Trata-se do salar de Uyuni, um deserto salgado que tem mais do que dez mil quilómetros quadrados, uma área que corresponde, assim por alto, a todo o Algarve e Alentejo.

Chega-se até lá vindo de Atacama, cruzando a fronteira entre o Chile e a Bolívia. Mas para quem já anda a cirandar por este segundo país só há uma porta de entrada: a tristonha cidade, com sabor a aldeia, de Uyuni, lar de dez mil almas.

A primeira coisa que se nota, mesmo antes de chegar, são os preços exorbitantes do alojamento. Para Adam Smith, tudo normal. Para o viajante, nem por isso. Depois de se andar uns tempos por esta parte da América do Sul estabelecem-se padrões, e estes apontam para uns 8 Euros para uma cama de hostel. Em Uyuni? Pense-se no triplo.

Mas tudo vale a pena para viver (não, não é “experienciar”) o que se seguirá. Passe-se apenas uma noite na povoação e já será demais. Mas é um mal necessário para se encontrar o melhor preço para o troço da viagem que se segue: um condutor, um veículo todo-o-terreno e mais cinco companheiros de aventura para passar dois dias inteiros a explorar o salar.

Os preços terão oscilado, mas quando andei por estas paragens a experiência era vendida por uns 200 Euros na Internet. Caminhando até uma agência já bem referenciada no Trip Advisor e tratando do assunto em pessoa, consegui o pacote por USD 120. Menos de 110 Euros. Literalmente tudo incluído. O transporte, o condutor, todas as refeições e as dormidas. Dica: os grupos para língua castelhana oferecem uma poupança considerável sobre as tours para quem não fala espanhol.

Depois de uma noite passada no pardieiro que se diz hostel, volta-se no dia seguinte ao escritório da agência, ali ao virar da esquina, para a partida. Na véspera, bem no fim da tarde, regressando ao crepúsculo, uma caminhada até ao cemitério de comboios.

A sua história remonta ao apogeu da mineração e do ferro-caminho na Bolívia, quando Uyuni era um ponto logístico chave para transportar minerais das minas andinas para portos do Pacífico. As linhas foram construídas por engenheiros britânicos entre 1888 e 1892, em resposta à necessidade de exportar prata, ouro, estanho e outros minerais.  Entretanto, nas décadas de 1940, a indústria mineira sofreu um colapso pela exaustão dos recursos e pelos custos de manutenção cada vez mais elevados. E muitos comboios foram simplesmente abandonados. Aqueles que hoje se vêem por ali.

Fica a uns 2 km do centro, um percurso que se faz bem a pé. No dia seguinte, pela manhã, estará cheio de turistas. É sempre a primeira paragem para as cerca de sessenta viaturas que diariamente partem com os seus clientes à descoberta do salar. E não é uma visita agradável, postas as coisas assim, em termos de multidão. Quando partia para a expedição dei as minhas graças por ter tido a ideia de explorar ao final da tarde, quando por lá apenas andava um casal de namorados bolivianos.

E pouco depois entra-se naquele mundo mágico, onde a terra e o céu se confundem, se tocam, se reflectem mutuamente. No início a “pista” assusta. A viatura leva água pelo nível das portas, balouça para um lado e para outro, sente-se a falta de aderência. Mas o Paco, rato velho do salar, manobra sem dificuldade, vai transmitindo confiança.

De repente, do cortejo de carros que iniciaram o dia, já nada resta. Somos só nós. Nada mais no horizonte. Caminha-se no céu. O branco do solo diz ser uma nuvem, o azul não está lá em cima, como estamos habituados, encontra-se por ali pelo meio. Encontrámos o salar em condições ideais, com uma fina camada de água, incrivelmente delgada. O suficiente para criar o reflexo perfeito mas tão rasa que nem entra nas botas.

Rola-se naquele mundo que não se parece com nada que se tenha visto ou se venha a ver. Às vezes, à distância, avista-se outra viatura. De vez em quando faz-se uma paragem para mais fotografias. O Paco é um mestre nos efeitos especiais, vai dando ideias e empresa os brinquedos que traz no carro, que subvertem ainda mais o sentido da realidade naquela paisagem surreal.

O salar atravessa-se no primeiro dia. Lá para o final da tarde o sal dá lugar a uma paisagem desértica de altitude. Perde-se o carácter etéreo mas é quase tão espectacular com a superfície branca que se deixa para trás.

Os lugares onde se dormem cheiram a aventura, são remotos, precários, abrigos para ousados viajantes que cruzam estas paragens distantes. Há também uma paragem num restaurante no meio do nada. Comemos ali, um simples mas delicioso almoço que viajou na viatura connosco. No exterior encontra-se uma pilha de bandeiras, colocadas em desordem, que me leva a uma viagem pelo imaginário polar, como se marcassem as nacionalidades que chegaram ao cume do mundo.

O segundo dia traz muitas maravilhas. Lagoas coloridas, guanacos e vicuñas às centenas (parentes selvagens dos lamas), paisagens de montanha, trilhos incríveis. Toma-se banho em banheiras naturais de água quente. Avistam-se bandos de flamingos rosados. No terceiro dia não se passa muito. Logo de manhã subimos ao ponto mais alto que atingiremos, a 5.500 metros. Depois, um par de horas até à fronteira do Chile. Um abraço sentido ao Paco, uma nota de gratificação que lhe coloco na mão. Para mim acaba ali, já os companheiros de viagem terão pela frente um longo dia de regresso a Uyuni, sempre a abrir, sem paragens.

 

 

 

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