21 de Maio de 2023

Acordar feliz em Luderitz. Relativamente cedo, para estar no portão de Kolmanskop à abertura, ou seja, às 8 horas. Quem quiser poder comprar um bilhete de dia inteiro por 350 Dolares Namibianos e com esse título pode chegar bem mais cedo, entrar e sair quando quiser ao longo do dia, inclusive no período em que o local está encerrado para o público geral, ou seja, da parte da tarde e até bem depois do pôr-do-sol (pelo menos em Maio, quando às 19 h já é de noite).

Sair a conduzir a cruzar Luderitz foi logo agradável. Sinto como que um passado aqui. Costumo dizer que Gozo é como Malta foi há 20 anos atrás. E que o Príncipe é o São Tomé de umas três décadas no passado. Por alguma razão – na realidade baseado em pouco mais do que estereótipos pessoais – sinto que Luderitz é uma África do Sul do tempo do Apartheid, sem este, mas funcional e com segurança nas ruas.

Pode ser apenas impressão minha, mas não vejo tensão social, vejo gente remediada mas não pobre, não vejo miséria nem potencial de crime e insegurança, vejo trabalhadores e tranquilidade. E foi pelo meio de isto tudo que conduzi. Grupos de homens a preparar um dia de trabalho. Crianças a ir para a escola, uma série de carrinhas junto a pilhas de malas e passageiros que deverão seguir para paragens distantes.

Tudo isto me agrada. Acentua o meu carinho pela cidade. Aqui é normal as pessoas se falarem. Quer quando se cruzam de carro, quer a pé. Não é obrigatório mas é comum. Gosto.

Bem, chegamos à cidade mineira. Encontra-se na margem da zona de exclusividade de extracção de diamantes. Passar a linha marcada dá direito a prisão ou, em alternativa, a uma multa de um milhão de dólares namibianos.

O simpático porteiro reconhece-me, da conversa que tivemos na véspera. Faz sinal para entrarmos apesar de ainda faltarem dez minutos para a hora de abertura. Somos os primeiros e parto logo à descoberta, antes que cheguem mais turistas.

A primeira vez que Kolmanskop me passou pela vista foi num episódio da excelente série Tales by Light (2016) que ainda está disponível no Netflix. Fiquei fascinado. Quis muito vir. E agora estou aqui.

Esta é hoje uma cidade fantasma aproveitada como atracçãturística. Mas durante décadas foi um local com uma qualidade de vida incrível. Para os da mó de cima, claro. E a separação não era apenas pela cor da pele, mas sobretudo pela categoria social. Havia mineiros brancos, alemães que vinham em busca de uma vida melhor, suada mas muito bem remunerada, especialmente na época entre guerras, quando a situação na Alemanha era bastante má. Aqui ganhavam uma fortuna que lhes permitia reconstruir uma vida decente no regresso. Para esses os contractos não eram renováveis. Terminado o período eram mesmo obrigados a partir.

Os que viviam na “cidade” que hoje visitamos (a outra área encontra-se na zona proibida, logo a seguir à vedação) tinham uma vida de privilégios e abundância. No início existia um bordel, mesmo ao lado do edifício dos solteiros. Uma conveniente distribuição espacial. Um comboiozinho distribuía abastecimentos directamente nas residências e tinha mesmo um espaço para passageiros, uma espécie de Uber Eats e metro em simultâneo. Havia uma fábrica gelo, as casas estavam equipadas com frigoríficos (geleiras, na realidade), telefone. Existia um hospital de excelente qualidade para a reduzida população de 350 habitantes. No edíficio maior tinham um casino, uma sala de espectáculos, um ginásio e um salão de bowling. Com a fortuna que aqui se fazia, a cidade patrocinava a produção de filmes com a condição da estreia se fazer aqui mesmo.

Eventualmente a extracção de diamantes cessou, mas as pessoas gostavam tanto de aqui viver que não partiram. Foi com o final do hospital que começaram a partir e a falta de água ditou a morte de Kolmanskop. Durante décadas o depósito que ainda hoje existe era cheio com água trazida da Cidade do Cabo. Um processo complicado que ditava o racionamento de 20 litros de consumo diário por habitação.

Desde o abandono que o deserto pressiona os edifícios. A areia invade por cada fresta. Uma janela partida é ponto de entrada e logo no interior se começa a acumular areia. Um cenário por vezes dantesco, um paraíso para o fotógrafo, com jogos de luz que realçam o dourado da areia e as cores pastel das paredes.

Podem-se aqui passar horas a explorar, observando os detalhes. Uma das casas foi mobiliada de forma a recriar a vida que aqui aconteceu. Outra foi mais ou menos restaurada, apesar de se manter vazia. Há muitas curiosidades, como o sistema de refrigeração do matadouro e a maquinaria ainda existente na fábrica de gelo.

Para melhorar ainda mais as coisas, todos os dias há visitas guiadas gratuitas, duas por cada manhã, às 9:30 e às 11:00. Bons guias, muitas histórias. Mas não acaba aqui: existem dois espaços museu e um café muito, mas muito agradável, com preços simpático, gente bem disposta e excelente comida.

Cheguei à hora de abertura e só saí à hora de encerramento. Passei cinco horas em Kolmanskop e fiquei saciado. Tinha hesitado perante o bilhete de dia inteiro, mas assim como fiz chegou. Paguei 150 em vez de 350 o que é uma boa diferença e que acabou por ser bem económico.

Duas horas em casa a descansar e pelas três e meia, de carro, explorar mais: Sharks Island é um istmo ligado à cidade. Uma zona pequena, exclusiva, com algumas muito boas casas de habitação e algumas opções de alojamento (na realidade estive para reservar aqui mas não o fiz, e ainda bem). Na extremidade, uma espécie de parque, com entrada paga (mas muito barata), onde se encontram uma série de memoriais e monumentos e um parque de campismo vazio. Há também um farol e um ponto para se ver as vistas. Parámos o carro e passeámos um pouco por ali. Muito agradável para passar um bocadinho rodeado por aquele ambiente marítimo, com muito ar fresco.

E agora, para outra aventura. As duas horas finais do dia foram passadas num ambiente de outro mundo: a norte de Luderitz o mar é rei. Existem enseadas, pequenas praias de mar hostil, e o Dias Point, o lugar onde um dia, há muitos anos, chegou o navegador português Bartolomeu Dias e ali colocou um padrão. Para lá chegar, desde a cidade, são uns 22 km. Por estradas de terra batida que parecem auto-estradas, onde se rola facilmente no limite de 80 km de velocidade máxima, sem se ver um só carro. A luz é mágica, a paisagem é extra-terrestre. Um final de tarde fabuloso que perdurará na memória.

A condução é extasiante, descontraída. Um desvio ou dois para ver recantos da orla marítima. Flamingos muito coloridos em pequenos grupos. E o mar, austero, todo poderoso.

O Dias Point é o símbolo de tudo isto. Ermo, ventoso, solitário. E nisto existe um café que não parece pertencer ali. Para começar está aberto, apesar de não se ver vivalma. E depois, espreitando para dentro, tem um aspecto impecável. Podia ser em Paris em vez de naquele fim de mundo.

Há também um parque de campismo varrido pelo vento e pela humidade sem fim que se levanta do oceano e envolve tudo.

O caminho de regresso foi outro, uma volta mais ampla, por paragens cada vez mais remotas. A luz está ainda mais mágica, é uma coisa indescritível. Vimos mais daquela costa selvagem, indomável, aqui de mar bravo para acolá se encontrar uma enseada de águas calmas. Ao longe avista-se agora Luderitz, abraçada pelo azul profundo do Atlântico Sul.

Chegamos mesmo ao por-do-sol. Os supermercados na cidade acabam de encerrar. Uma curta paragem na mercearia de bairro e depois um serão tranquilo, longo como não acontecia desde que cheguei à Namibia, porque nunca tinha tido um dia tão calmo e pouco fatigante.

 

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