17 de Fevereiro de 2023

Ah que belo dia. O melhor, de longe, das duas semanas passadas no Bangladesh. Acordámos cedo para iniciar a jornada a bom tempo. Apesar de irmos apenas até aos arredores de Dhaka, os 35 km que nos separam de Sonargeon devem ser tratados como se de uma viagem de longa distância se tratasse.

A minha insistência, para optimizar o tempo, apanhamos um Uber para o ponto de onde os autocarros partem naquela direcção. Pela vontade do sabe-tudo espanhol iríamos de autocarro… claro, perdendo talvez uma hora nesse capricho.

Chegamos, há uma longa fila de autocarros a recolher passageiros. O Rossi encontra num instante aquele que nos convém, depois de uma breve conversa com o pessoal compramos os bilhetes numa banca de rua e entramos. Somos dos primeiros, apanhamos lugares logo à frente. Subtilmente deixo-os sentarem-se juntos, coloco os meus phones e durante o trajecto fico a salvo dos bitaites do sabichão.

Tão entretido iam os meus companheiros na conversa que por pouco perdíamos a paragem certa. O Rossi chama-me aflito, levantamo-nos e corremos para a porta, conseguindo saltar para a rua mesmo antes do autocarro retomar a marcha.

Dali é uma pequena caminhada até Sonargaon. Antes, paramos para ver uma antiga mesquita, um edifício pequeno mas com muita história para contar. Ali perto há algumas casas e uma nova mesquita. Os meus amigos travam conhecimento com um jovem local, conversam animadamente enquanto me mantenho um pouco distante. Acabamos por nos sentar à mesa da tasca ali ao lado a convite do tal jovem.

Bem, de novo a caminho de Sonargaon. Este local era o meu objectivo principal no Bangladesh e fiquei imensamente grato ao Rossi por ter feito a visita acontecer. Sozinho nunca conseguiria. Trata-se de uma cidade fantasma, hoje uma atracção turística, com bilheteira à entrada e muito popular para os bengalis.

Viemos cedo e num dia de semana, mas mesmo assim havia muita gente a explorar os recantos de Sonargaon. Na realidade o que se visitou foi Panam Nagar, que se localiza em Sonargaon.

Hoje é uma cidade fantasma, mas no século XIX estava no seu apogeu. As deslumbrantes casas que se encontram nas suas ruas foram construídas por mercadores hindus. Depois de um período de decadência, a cidade foi completamente abandonada no seguimento das tensões religiosas que emergiram com a Partição da Índia Britânica.

Foi um momento alto. Deliciei-me com aqueles traços do passado, apesar da pequena multidão com que partilhava o espaço. Em determinado momento disse aos meus companheiros que ia cirandar um pouco a solo, preciso de afastamento para fotografar.

Infelizmente as casas estão todas encerradas. Uma foi restaurada, pelas autoridades, para fins turísticos. O Rossi mais tarde vai-nos perguntar o que achamos melhor: alargar os trabalhos às outras casas ou deixá-las estar assim.  E nisto concordei com o espanhol. Que as deixassem estar para preservar o ambiente único do local. O nosso anfitrião não concorda.


Delicio-me com aquilo. Quase todos os edifícios têm ricos ornamentos, colunadas e cantarias trabalhadas. O seu estado de conservação varia.

Reencontrei os meus companheiros de aventura sentados à beira de um largo, em amena cavaqueira, e juntei-me a eles. Pouco depois iniciámos o caminho de regresso. O espanhol estava cheio de planos que, fiel a si mesmo, tentava impor-nos. Chegou a insinuar conhecer melhor os caminhos e formas locais do que o Rossi. E isso para mim foi mesmo a gota de água que me fez transbordar o copo. Eles tinham fome. Esperei no exterior enquanto comiam numa tasca.

Depois, sem perceber como, separámo-nos. O espanhol dizia que era para um lado, apesar do Rossi lhe tentar indicar a direção certa. Pois apanhámos o nosso tuk-tuk e ele ficou a andar para onde pensava ser o seu rumo.

O dia melhorou desde aquele momento. O Rossi ia-me mostrar uma ilha, fomos até ao fim da estrada, paguei ao nosso condutor e entrámos num barco, uma espécie de piroga a motor, o meio de transporte das comunidades das ilhas. Esperámos que chegassem mais pessoas até que o barqueiro entendeu haver passageiros suficientes para iniciar a travessia.

Chegámos ao outro lado e era fascinante. Mesmo. Um cenário de um outro mundo, muito distante das referências ocidentais que chegam a quase todos os recantos deste nosso planeta. Ficámos ali a ver aquilo. No areal à nossa frente viam-se duas embarcações. Delas vinha uma música electrizante e iam ficando carregadas de pessoas, cada vez mais, até que se fizeram ao largo, uma depois da outra.

O Rossi explicou-me que eram peregrinos. Desciam o rio, numa viagem que duraria ainda mais dois dias. Num repente desafiou-me para nos juntarmos e eles, que seríamos bem vindos e depois logo veríamos como regressaríamos. Pensei por uma fracção de segundo antes de lhe dizer com um sorriso que estava maluco. Quando perdi o senso de aventura? Devia ter aceitado, seria uma experiência sem igual, uma memória de primeira apanha. Mas não o fiz. Retraí-me e sei que me vou arrepender e pensar no que perdi até que me esqueça.

Alguns locais vieram falar comigo. Diz-me o Rossi que vêm ao cheiro do dinheiro do estrangeiro – eu. O Rossi é muito crítico do interesse que os seus compatriotas – de forma geral – têm nos estrangeiros. Sente-se insultado, desperta nele um sentimento de inferioridade, acha que nos tratam demasiado bem, como semi-deuses, superiores.

Vamos passeando pela aldeia que existe ali. O meu anfitrião, sempre comunicativo, vai metendo conversa com quem encontramos, por vezes fica um pouco a falar, e depois transmite-me o resumo do que se passou.

Encontramos o capitão da embarcação que nos trouxe até ali. Mostra-nos com orgulho o interior de um par de casas. São habitações luxuosas para os padrões locais, pertença de emigrantes. Uns na Europa, outros no Médio Oriente.

Procuramos um sítio para beber um chá. Está fechado. Encontramos uns amigos que nos fazem companhia, com quem falamos longamente. Mais o Rossi claro, em bengali. Eu ficou a descansar, garanto-lhes que não há problema, que conversem à vontade. Está calor.

 

Eventualmente o dono do café abre o estaminé. Bebemos então o tal chá e o Rossi fala com os outros clientes. Um deles tem uma conversa menos amistosa com ele. É mesmo que à partida me pede para lhe tirar um retrato. O meu amigo diz-me que ele teimou que o Rossi me acompanha para fazer dinheiro e que se recusa a acreditar no contrário.

Bem, voltamos aos barcos, esperamos longamente, mas não vêm mais passageiros. Entre nós pagamos um pouco mais para partir. E logo estamos na margem oposta. Um tuk-tuk leva-nos a um ponto na movimentada estrada de onde partem autocarros para Dhaka. Num momento de sorte há um que abre as portas para sair mesmo quando ali chegamos. Vamos a caminho. Depois haverá ainda que mudar para um autocarro urbano para o bairro do Rossi.

Neste outro – já noite cerrada – sou a grande atração de um grupo de estudantes, de farda, que me fazem perguntas e me chegam a pedir autógrafos e dedicatórias nos seus livros de estudo. O Rossi explode, põe ordem na casa, ordena-lhes que se acalmem, que parem com as fotografias e selfies comigo. Fico só a falar com o que está mesmo à nossa frente e que era um miúdo impecável, com um grande interesse pelo mundo e uma sensibilidade enorme para os problemas do seu país. Enquanto os outros queriam saber do Cristiano Ronaldo e de quanto eu ganhava em Portugal, este perguntava-me sobre os problemas de trânsito em Lisboa e coisas assim.

O melhor dia no Bangladesh passou-se assim, antes de chegar uma cortina que retirou toda a luz à minha visita ao país.

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