9 de Janeiro de 2020, Quinta-feira

Foi talvez a noite mais bem dormida desde que saí de casa. Nove horas de sono interrompidas apenas pelo xixi nocturno. Lá dia o dia estava lindo. Outra vez. Chamava por mim. Mas a cama quentinha também. Deu-se então uma batalha pela minha alma que terminou com um compromisso: mais um pouco de aconchego e logo sairia para caminhar pelas ruas desta simpática aldeia.

E foi em grande. Queria chegar a um ponto de onde se pudesse ter uma vista geral de Salamina e comecei a subir. Sabia a direcção certa, mas não fazia ideia do que lá encontraria.

Subi e subi. As pessoas aqui são mais reservadas, menos hospitaleiras e simpáticas do que noutras partes da província. Vejo um homem local a uma janela com uma camisola da Selecção Nacional. Meto conversa, mas do outro lado apenas frieza. E não, não tinha autorização para tirar uma fotografia. OK, não se fala mais nisso.

A outro pergunto se há um lugar com boas vistas. A custo lá diz que sim, mas tinha que subir ainda muito. O que fiz. Passei por umas antenas de telecomunicações, uma igreja azul e outras antenas do mesmo género. Sempre, sempre, a subir. E muito.

Lá encontrei um ponto assim mais ou menos. Mas pelo esforço esperava mais. E depois para baixo, pelo mesmo caminho. Foi um bom passeio, o tal exercício matinal mais apropriado a uma cabra montanhesa, que se tornou um hábito nestas terras do café.

De regresso ao centro, com um certo alívio devido a uma certa hostilidade das gentes dos “subúrbios”, foi hora de experimentar a Macana, uma bebida que na realidade é uma papa, tradicional da aldeia. Nem sei ao certo quais são os ingredientes, mas são muitos. E resultam bem, devendo-se mexer a caneca antes de começar a comer, de colher. É quente e doce, serve muito bem para pequeno-almoço e recomenda-se.


O ponto seguinte da agenda era encontrar a casa museu. Porta fechada. Alguém nos diz para bater e com força. À primeira não resultou. À segunda lá apareceu alguém. Uma confusão. Ao mesmo tempo estava a chegar uma senhora, que falava com outra pessoa que desceu a seguir à que nos abriu a porta. E ainda a seguir aparece um homem, apresentado como marido pela senhora que nos recebeu e tinha começado a dizer que não havia nenhum museu e não se podia visitar.

Bem, o nó desatou-se e as pontas começaram a fazer sentido. Eram colombianos que viviam há muitos anos nos EUA, tinham comprado a casa para ali abrirem uma hospedaria e viverem assim os tempos pós-reforma. Não sabiam que ali tinha existido uma casa-museu e fosse como fosse aquilo estava em obras e não dava mesmo para visitar.a, o Jaime, de seu nome. O artista, já amigo deste, tinha dado autorização para visitarmos a sua casa, onde vivia com a mãe e uma irmã. Mas antes disso faríamos muitas paragens, enquadradas por muita conversa. A primeira foi na casa anexa à igreja, parte desta, onde nos deixaram ver o pátio interior. Segundo o Jaime, estava-lhe a fazer um favor, porque para visitantes estrangeiros todas as portas se abriam e ele tinha o acesso facilitado para ver as coisas.

Falámos sobre muitas coisas. Descobrimos que há poucos meses tinha estado em Portugal, a concluir uma peregrinação a Santiago de Compostela, e havia ficado em Albufeira. Mundo pequeno, este.

Mostrou-nos um dos dois painéis do artista, um baixo-relevo feito em cimento depois coberto com uma camada de metal dourado, ilustrando os momentos determinantes da história do povoado. Ali se vêem cenas da construção da igreja, da guerra civil que por aqui passou, da chegada da electricidade, da construção do aqueduto… convém não esquecer que também para as povoações a vida dá muitas voltas e que no século XIX a hoje insignificante Salamina era mais importante do que Medellin.

Jaime lamentava o mau momento que escolhemos para visitar: depois das “ferias” muitas das casas mais interessantes estavam fechadas para… férias. É o caso da escola de artes locais, que preserva e transmite para as novas gerações as técnicas e maneiras tradicionais, sejam elas cozinha, carpintaria ou produção de vestuário.

Acabámos por visitar a casa do artista, onde fomos recebidos pela mãe. O local é um paraíso, um dínamo de inspiração. A construção não poderia ser mais tradicionais, com um grande pátio central em redor do qual os quartos se distribuem. E com uma vista linda de morrer para as montanhas que envolvem Salamina. A decoração, claro, acentua as qualidades da casa. Dei comigo a sonhar em passar uns tempos numa casa assim. Inevitável.

Ainda vimos um café-restaurante que o Jaime nos recomendou. Estava fechado mas por sorte duas senhoras faziam a limpeza e deixaram-nos espreitar. Muito bom. Outra casa tradicional, que mantém algumas das divisões decoradas e mobiliadas como antigamente, enquanto que outras assim como o pátio central fazem de salas para os clientes. Nas paredes, várias exposições de arte, enriquecidas pelo colorido das muitas flores existentes. Iríamos voltar.

O passo seguinte foi visitar a tipografia, no piso térreo do edifício do Jaime, que ao adquiri-lo se tornou senhorio deste negócio. O tipógrafo gostava de falar. De rajada, sem parar para respirar, contou-nos a história de todas as máquinas ali existentes e mais umas quantas, dele próprio e da sua família.

Tivemos que o interromper, senão as vinte e quatro horas de um dia não seriam suficientes. Para terminar esta sucessão inesperada, o Jaime fez uma visita guiada às obras de renovação que tinham lugar na sua propriedade.

Regressámos ao nosso hotel para descansar as pernas e relaxar um bocado na sua magnífica varanda onde se leu um bocado, com uma chávena de infusão de frutas na mão. Até que a fome apertou. Saímos para a rua, fomos directos a um restaurantezinho local que nos tinha ficado no olho, um pátio decorado com cores alegres, como se fosse uma sala de jantar privada, só que com mais mesas. Lá estava o Jaime e família a almoçar.

A refeição estava deliciosa. Um bifezinho, com arroz, salada, banana, antecedido de uma sopa de banana e empurrado com sumo de goiaba. E tudo isto por 2,50 Euros.

As senhoras que limpavam o café-restaurante simpático tinham dito que abriria às 12 horas. E então dirigimo-nos lá para a sobremesa. Fechado. Bem, fomos dar uma volta. Rever o bonito baixo-relevo. E as fachadas coloridas das casas mais garridas da aldeia. Entrámos numa onde no primeiro andar existia um café e uma pizzeria. Os estabelecimentos não agradaram. Música alta. Mas a incursão revelou-nos mais um delicioso pátio interior com uma traça muito local.

Quando a esperança já tinha morrido, o tal café-restaurante foi encontrado de porta aberta. Não há dúvida, o local é um refúgio para um certo extracto da sociedade local, de pessoas mais dadas à cultura e às artes. O ambiente assim o prometia e os poucos clientes que lá se encontravam confirmavam-no. Entre eles, o artista, que estando acompanhado dispensou alguns minutos para vir até à nossa mesa para mais dois dedos de conversa.

Comi uma fatia de bolo de banana e um sumo de amora silvestre. Delicioso. Momento muito agradável.


Palavra puxa palavra, grande confusão, e de repente tínhamos um inesperado gui

Ainda comi um gelado na gelataria mais bonita do mundo, instalada no primeiro andar de um destes prédios pitorescos, junto à igreja. Quatro bolas de gelado que encheram um copo do tamanho de uma imperial. 1,10 Euros.

Depois, ir até ao alojamento, trabalhar um pouco. Descansar. Deixar passar as horas. Antes de regressar ao exterior para um último adeus a Salamina, um sentir derradeiro do palpitar da comunidade. Não resisti a comer um último gelado e depois, de surpresa, mais um episódio inesperado. Entrei no posto de turismo que apesar de ser já hora de jantar ainda estava aberto. E ali conheci o figurão que lá trabalha. Um homem dos seus quase sessenta anos, diria eu, de sombrero, bigode e sorriso franco. Um homem que quase bate o tipógrafo da cidade (na realidade, da região, porque em muitos quilómetros em redor não existe outro).

E este simpático homem encheu-me as mãos de folhetos informativos e os ouvidos com as suas histórias e ricas informações. Também gostava de ouvir, foi um verdadeiro diálogo, em que se falou da segurança no país, da extinta guerra civil, das minhas memórias de 2016 e do muito que há a ver. As recomendações passaram pelo que comer em Salamina e pelas maravilhas do café local. Ele, tomava uns vinte por dia. Tensão alta, pois claro, mas um comprimido por dia fazia maravilhas e permitia-lhe usufrui do seu doce vício sem percalços. Falou-nos dos pionoños, fatias de bolo, ou melhor, de torta, recheadas com dulce de leche a que se chama na Colômbia de arequipa (penso eu) e compotas de fruta. E adiantou logo os nomes de dois estabelecimentos onde poderíamos ter do melhor.

Isto não estava nos planos mas fomos mesmo seguir a recomendação. Encontrámos a La Tertulia, outro local vocacionado para as pessoas culturalmente mais acima e onde o jovem casal de proprietários nos recebeu com uma simpatia extrema. A torta tinha acabado mas logo ele saiu para arranjar alguma da melhor que se faz em Salamina. Foi mais um momento agradável, antes do regresso para a última noite na aldeia.

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