Dia 28 de Fevereiro de 2020, Quinta-feira

O primeiro dia completo na capital do Paraguai, uma cidade de que tanto gostei. O bizarro é que tenho dificuldades em explicar porque me agradou desta forma intensa. De uma coisa tenho a certeza: ter lido o livro At the Tomb of the Inflatable Pig contribuiu imenso para isso. Na realidade, essa leitura, feita em 2013, deixou em mim uma semente que desenvolveu uma vontade indomável de visitar o Paraguai e foi com toda a naturalidade que o reli durante esta viagem.

Foi um dia intenso, muito preenchido. Calcoreei todos os principais espaços de Asunción e depois de tomar um pequeno almoço de aveia com leite em pó (uma refeição a que me afeiçoei nesta viagem: barato, nutritivo, facilmente transportável e preparada) saí para a rua decidido a ver um dos locais que mais me interessava na cidade.

Foi há muitos anos que vi um documentário sobre viajar no Paraguai. Talvez há uns 15 anos, numa altura em que o Travel Chanel era ainda de facto sobre viagens. Era uma série inspiradora, que me marcou de tal forma que fiz duas viagens por causa do que vi nos seus episódios: Curdistão Turco e Síria. E das memórias que tinha de Assunción nesse programa restavam duas referências: O Museu das Memórias e o Lido.

O Museu das Memórias é um espaço museológico dedicado à ditadura de Alfredo Stroessner, albergado num antigo centro de detenção clandestino, localizado numa zona central da cidade, junto ao Ministério do Interior.

O sítio quase que passou despercebido pela História que se regista mas por um acidente foi descoberto já depois da queda da ditadura. E os documentos ali encontrados revelaram-se vitais na investigação dos crimes cometidos nessa época obscura.

No local um senhor faz de guia. Uma vítima da ditadura, já com alguma idade e dificuldade em falar. Claramente foi sujeito a uma laringectomia. Usa um daqueles aparelhos que criam uma voz metálica mas que pelo menos permitem a expressão oral. Está ali para responder a qualquer questão e para recolher o donativo que eventualmente o visitante deseje deixar.

Se o museu vale a pena? Só para quem como eu tem interesse por estas temáticas. O espaço tem claros problemas de financiamento e sobrevive mal.

Dali dirigi-me ao centro do centro, se assim se pode dizer. Adoro caminhar em Asunción, especialmente pelos contrastes entre o património arquitectónico. Gosto do carácter decadente das ruas, do calor, do céu azul. E de descobrir coisas ao acaso. Como o Gran Teatro Victoria, um dos cinemas vintage que apesar do estado de abandono se mantém ainda de pé. 

Chego ao Panteão Nacional dos Heróis, que de certa forma marca o centro da cidade. No exterior uma guarda de honra com fardas navais. No país do burlesco e do absurdo não está mal: o Paraguai não tem contacto com qualquer grande superfície de água e contudo um dos seus lugares mais sagradas encontra-se guardado por uma força da Marinha. A vista é gratuita, solene e rápida.

Do outro lado da rua, a uns 20 metros, o Lido. Adoro! É um daqueles espaços que emana história. Um snack-bar onde gerações se sentaram, um lugar mítico adequado para uma refeição rápida. É aqui que John Gimlette, o autor do tal livro, se reúne com os amigos diariamente. Causa-me um arrepio estar ali, num espaço sobre que tanto li e vi.

Peço um hambúrguer que como deliciado, não tanto pela comida como pelo ambiente e pela captação do passado que ali vive.

Ando mais um pouco. Visito a Casa de La Independencia, um espaço histórico bem arranjado, de entrada livre e visita gratuita. Estão lá alguns estudantes. Cidadãos visitam a Casa. É quase meio-dia e o calor aperta em Asunción.

Sigo. Chego à zona do palácio presidencial, outro fruto do burlesco paraguaio. Encostado a um dos mais importantes edifícios governamentais existe um bairro de lata. Nunca vi uma área residencial deste tipo que confinasse com as instalações de um órgão de poder. O burlesco, de novo. É isto que adoro neste país.

Encontro o espaço cultural Mazana de la Rivera. É um saco cheio de nada. Vem referido em todos os guias turísticos da cidade mas está vazio. Os espaços de exposição não expõem nada, o café não tem quase nada para vender. Mesmo assim é um pólo que atrai a juventude instruída, que sente ali um potencial por concretizar. Há rapazes e raparigas com pinta de estudantes universitários que se sentam no chão. Ali há Wi-Fi gratuita e isso é outro factor de chamamento. Burlesco. Outra vez.

Prossigo o passeio mas não há mais nada de destaque. Apenas caminho, absorvendo o que vejo. Bonitos graffities numa parede. E os contrastes, sempre. Antigo e moderno. Decadente e imaculado. Prédios maravilhosos que ameaçam ruir. Antigos hotéis gloriosos que estão abandonados.

Estou cheio de sede. Depois de tanto andar e suar….   então entre numa loja de conveniência cheia de frigoríficos repletos de bebidas frescas. Longe vão os tempos em que tinha que beber Inka Cola na Bolívia à temperatura ambiente. Aqui não se brinca em serviço. Tudo está maravilhosamente gelado.

Abasteço-me, bebo logo um litro de uma qualquer mixórdia de refrigerante com vago sabor a laranja e guardo as outras garrafas para depois.

Chego ao hostel exausto. Está vazio. Eventualmente encontro um brasileiro quando ambos investigamos a causa da quebra do serviço de Wi-Fi. Não o tornarei a ver. É como se estivesse em casa.

Ando por ali a ver detalhes. Descubro uma série de fotos de família. Três crianças sentam-se nos degraus que dão acesso ao meu espaço favorito, onde leio ao final da tarde. Suspeito que uma delas será o actual proprietário do hostel, depois de o ter herdado dos avós. Foi um palpite em cheio, conforme descobri mais tarde em conversa com a menina que no dia seguinte estava na recepção.

Este hostel toca-me profundamente. Transmite-me uma nostalgia por uma época que conheci de passagem, entre o momento em que ganhei memórias e o seu desaparecimento, por volta de meados dos anos 70. Aquela casa podia ser em Lisboa, sei lá, no Restelo, por exemplo. Ou em Luanda. E sinto ali os ecos de uma vida e de uma felicidade que se extinguiu. Imagino os risos das crianças, a alegria dos avós em os ter ali. E depois o seu crescimento, o afastamento progressivo com a chegada à vida adulta. A solidão a crescer entre aquelas paredes, o espaço que de repente parece vazio. E agora… agora é um hostel. Uma subtil tentativa de perpetuamento da vida que ali existiu. Mas que parece não estar a resultar.

Já não saio. Fico a descansar, leio. Volto aos pormenores. Observo tudo. Ao serão vejo um francês de origem africana na cozinha. Um tipo estranho. Não me fala senão quando insisto nas boas noites. A menina da recepção diz-me que ele é quase cego. No dia seguinte quando vou dentro do Uber vejo-o a caminhar para o aeroporto, com um bastão e uma mochila.

 

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